Como sabem dois ou três que ouvem minhas lamúrias, incluindo Juracy Dorea - inventor desse sertão de couro- sou órfão da feira livre, desde janeiro de 77. Tabaréu que só foi ter luz elétrica em casa aos dez anos, só via aglomeração quando vinha com minha mãe, segunda-feira, fazer feira, nos 20 mil metros de ruas que ela ocupava com seus quatro mil barraqueiros. A luta era acompanhá-la no ritmo com que ela visitava seus fregueses, pechinchando, entre cestos e caçuás. Tinha pavor de me perder e ficar sozinho sem saber o que fazer, sem sua proteção. As glórias eram um caldo de cana no Predileto, atravessar a poderosa galeria Caribé, para ela ir ao inevitável armarinho Marta, e finalizar com uma banana real com refrigerante, na lanchonete, na saída para a Sales Babosa.
Um dos perigos era quando eu via os vendedores de óleo de peixe-elétrico. Majestosa visão para minha tabaroice ver arengueiro anunciando curas milagrosas, realizações impossíveis, o dinheiro entre os dedos, e o peixe elétrico no tanque, pronto para dar sua descarga de 120 volts. Era muita emoção. Dizem que há mais de 120 espécies deles na América do Sul e que o Puraquê – o maior de todos - pode chegar a 600 volts.
A verdade é que vender curas e milagres é um dos mais antigos ofícios de ludibriar a humanidade. O produto mais simbólico dessa trapaça é o “snake oil”, o óleo de cobra. Ele surgiu quando os chineses foram construir a primeira ferrovia transcontinental, nos EUA, e levaram uma pomada da medicina chinesa, extraída da cobra d’água (dizem que tem ômega 3). Usavam para reduzir as dores articulares, ao fim do trabalho, o que motivou falsos médicos americanos criarem um produto xing-ling que curava tudo e fez sucesso no Velho Oeste. Na maioria das vezes só tinha corante. Pagavam para pessoas fingirem cura ( igrejas não lançaram nenhuma novidade), e faturavam muito. Só chegou ao fim em 1916 com o processo dos EUA contra Clark Stanley, o mais renomado mascate desse linimento, cuja composição era óleo mineral, 1% de sebo, capsaicina de pimenta, terebentina e cânfora.
Nem isso coibiu igrejas, médicos, e outros agentes de saúde, de ética duvidosa, de anunciarem fórmulas milagrosas para cura, emagrecimento rápido, juventude eterna, libido insaciável, reordenações moleculares, nos rádios, TVs, redes sociais, faturando milhões, mostrando que nada muda no velho mundo, embora as velhas diligências e os peixes tenham sido trocados por consultórios modernos, palanques de show, e propaganda filmada com câmeras Alexa 65 Imax.
Outros grandes mascates do “snake oil” são os políticos: eles prometem transformações revolucionárias que nunca se concretizam, continuam a manter a concentração da riqueza, a brutal distância social, os péssimos serviços, apesar da derrama fiscal, e um voraz apetite pelas verbas públicas.
É por isso que toda vez que os ouço, mesmo já crescido, tenho medo de me distrair, me perder de minha mãe, e ela não voltar para me salvar puxando pelas orelhas o adulto iludido pelas mentiras que eles contam.
Tenho alguns vícios confessáveis. Ler e comer. Um, para alimentar o espírito, o outro, para saciar os instintos. Não necessariamente nessa ordem de preferência ou intenções. Afinal, ainda que haja a navalha do peso, ameaças apocalípticas do colesterol e da medicina, comer continua a ser ritual de importância quase divina. Não me refiro à comida da sobrevivência, mas à supérflua. Aquela, ingerida para satisfazer as células bestiais que anseiam o requinte de uma especiaria indiana, a festa dos sentidos causada por um creme de maracujá, servida em um prato largo, com calda quente e canela nas bordas, a excitação diante de ostras gratinadas, ou de um Tiramissu.
Até mesmo a simplicidade de uma salada de melancia com creme de leite, do tomate batizado por manjericão, um peixe fresco assado na telha, na praia, ou o doce de tomate de minha mãe. Fraquejo, ainda, diante das tentações da carne- e mente quem diz que a carne é fraca- e os molhos que adornam as massas com sabores de todas as latitudes. Como não faço restrições, nada a declarar contra o baião de dois, o mangalô, a farofa de banana, o meninico de carneiro, ou a maniçoba de um domingão qualquer. Mas é que falamos aqui de outro clima, contexto e apetite.
Comer é arte que vai além do mastigar automático dos maxilares. E, quem assistiu Festa de Babette, sabe a magia de um banquete especial. Comer exige abnegação, entrega, sensibilidade. Desprendimento. Deve-se comer, buscando tudo, menos saciar a fome. Quem come para matar a fome não tem tempo para decifrar as nuances de um tempero, de uma erva escondida por trás de muitos outros sabores, nem traduzir a alquimia das combinações. E Shakespeare já dizia, ou devia ter dito: “ Deus, está nos detalhes” É preciso, portanto, comer como quem ora, estando certo que comer começa muito antes do primeiro garfo adentrar o espaço sagrado de sua boca. Comer envolve a iluminação local, a música, o tom do atendimento- não excessivamente íntimo, não irritantemente impessoal-, a decoração que ameniza os olhos, a temperatura ambiente, por vezes desconfortável, e o delicadíssimo cuidado com a limpeza e os toilletes.
A bebida deve ser um enlace que aguça e atiça os instintos para o ritual da alimentação, sempre, se possível, com a companhia desejada. Embora estejamos longe do tempo em que se conquistava um homem pelo estômago, havendo fartura de argumentos mais prazerosos e tentadores, um jantar perfeito pode ser a passagem secreta para uma noite inesquecível e a posse definitiva da alma e corpo do amado ou amada. Nada deve destoar, pois os sentidos devem estar todos atendidos, para que você dedique seu humor e percepções exclusivamente à comida. Ah, mas há ainda a comida. Que deve ser satisfatória no trivial- qualidade mínima- e insuperável quando for ousadia.
Um bom restaurante precisa não cometer pecados no deja vu e ser tão sedutor, quando inova, como um decote feminino cortado na medida precisa. Aquele que sugere anatomia de beleza impensável, mas não revela tudo, deixando parte da descoberta a quem lhe toma. As poções não devem deixar a impressão que somos um consumidor lesado, nem o prato deve demorar o tempo de uma gestação. A comida, entretanto, não deve apenas ter conteúdo. É preciso que tenha também beleza. Ainda que não artesanal como na cozinha japonesa- que muito se preocupa com a estética- mas deve ser ornamentada o suficiente para demonstrar engenhosidade e arte, pois não se deve esquecer que o restaurante tem que atender não só ao corpo, mas essencialmente ao espírito. Aliás, a ciência já sabe que a primeira fase da digestão - dita cefálica- começa antes que se coma o alimento. Não é a toa que andamos por aí a dizer que fulano ou fulana, nos deixa com água na boca.
Enfim, os orientais homenageiam seus mortos com comida, mas, eu, ocidental, pecador, me rendo mesmo é a celebração da vida. À mesa.