Vivemos tempos extraordinários, velozes, talvez, como nunca na história da civilização. Já não acordamos mais velhos, mas obsoletos, nessa vertiginosa corrida do ouro tecnológica, em que substituímos as funções pessoais por máquinas, aplicativos, que desenham um século radical e a maior mudança de hábitos em um curto tempo, da história.
Enquanto nos milhões de anos da civilização fomos marcados por apenas algumas grandes Revoluções – Industrial, Francesa, Russa, Inglesa- agora, temos revoluções diárias, em que uma novidade se sucede a outra, continuamente, empurrando fronteiras implacavelmente para adiante, tornando quase impossível nos mantermos dentro do jogo. Todo dia é um golpe contra nossa versão mais inclusiva, especialmente para nós que não somos nativos digitais e sim imigrantes digitais. Alías, tenho a impressão que alguém que nasça e morra nesse século viverá mudanças que nós gastamos milhares de anos para vivermos. É como se alguém tivesse presenciado a invenção da roda e o trem bala, o vestido longo e a minissaia, em uma mesma vida.
No ritmo em que vamos, desatualizamos o presente quase ao mesmo tempo em que o inauguramos, e consumimos com volúpia um arsenal de informações que nos roubam tempo sem retribuir com qualidade, visto que não sabemos ser seletivos diante da vastidão de ofertas. As redes sociais romperam a barreira entre casa e trabalho, vida íntima e pública, anonimato e sub-fama , sono e vigília, afinal, já podemos até programar publicações para nossa ausência.
Essa ampliação, exibição, expiação, coletiva, e despudorada, trouxeram imposições e necessidades, antes, inexistes. Assim, passamos a viver a vida não como ela é, mas coreografada como gostaríamos que fosse vista. Uma imagem passou a valer muito mais que mil palavras, nesse mundinho soft, anódino, coach, digital influencer, de follow e unfollow.
A uma primeira impressão a profecia de Andy Wahroll de que no futuro seriamos todos famosos por 15 minutos, está se concretizando, mas há lesões mais sutis e violentas que essa. A necessidade de vida produzida, permanência online, e espetáculo continuado, está carbonizando o tempo, nossa escala de importância, e substituindo a interação com voz, toque, emoção, por interação escrita, feita de emojs, e figurinhas.
Estamos desconectando humanos de forma avassaladora, ainda que ampliando o universo de seguidos ou seguidores. Isso tem implicações comportamentais graves, e modifica nossa conformação cerebral, treinado para ouvir. Como diz aquela música: eu sou de todo mundo, eu sou de ninguém. Nesse universo de desafetização imperceptível, estamos perdendo a noção do que é ser importante, insubstituível, a alguém, e já não ousamos dedicar tempo- a mirra e o incenso mais preciosos de hoje- ao outro. Narcisos, estamos ensimesmados com nós mesmos e sequer podemos ser amarrados ao mastro como Ulisses, para escaparmos desse canto de feiticeiro.
Logo, nos faltará até o tempo para sermos famosos por qualquer minuto. Há, entretanto, instantes luminosos aqui e ali, que clareiam a escuridão da indiferença e da solidão que se anuncia. Fui levar minha filha ao aeroporto, pois, passamos o fim de semana na roça, no aniversário de minha mãe. Quando cheguei lá era por volta de 13: 30h. Foi quando ela me ligou:
- já tá por onde? Vem almoçar?
- Não mãe, fique tranquila, pode comer. Ainda estou no Aeroporto, deixando Luísa
- Foi, então, que ela retrucou: não tem nada não. Vou esperar mais uma horinha
Minha mãe fez 89 anos e talvez suas horas já sejam escassas, para desperdícios, por isso, agradeci, emocionado, a lição: é preciso continuar fazendo questão. Amor, é sempre poder esperar alguém por mais uma horinha.
Verdade que os príncipes já não andam em cavalos brancos, são cada vez menos nobres e as mulheres tem preferido o ronco do motor ao trote do eqüino, mas nem por isso devemos deixar de acreditar que, em algum lugar, a vida é feita mais de encontros do que de desencontros, e uma mulher te espera de vestidinho e flor no cabelo com um sorriso de infância e certezas de uma vida inteira.
É certo que os cientistas com suas ressonâncias e dosagens de neurotransmissores andam a desmistificar a paixão, a transformá-la numa reação química de serotinina e dopamina, com validade máxima de três anos, mas nem por isso vamos deixar que levem para o cérebro nossa memória de amor. Não desembarquemos da nossa Arca de Noé imaginária, em que as espécies entram aos casais e sobrevivem, juntas, muito além do dilúvio e repovoam nossas esperanças, mesmo sabendo que os advogados, já não esperam sequer que passe a chuva das mais brandas, urgente que é, partir do outro.
É imprescindível manter a capacidade de renúncia sem ressentimentos, e a fé , nos que juram à boca faminta das noites, ou aos suores dos corpos, que é sim, o amor, sua viagem e sina.
Ainda que, por vezes, já nem haja mistérios na mulher que desabotoa o vestido, de gesto tão serial, ou que os homens sequer sabem que as estrelas oscilam todas, de leve, no céu, quando ela, somente ela, te chama para o próprio destino e gozo, não devemos deixar de acreditar nas lágrimas das que choram nas entregas, nas confissões dos amantes impossíveis, porque é dele, deste orvalho e barro, que precisamos para não nos tornarmos avessos ou secos de sentir.
Sei que é fato que o amor começa e acaba, às vezes, em uma mesma dança, mas nem por isso vamos deixar que nossas falhas de humano nos impeçam de reinventar o sonhar e exercitar o pertencer. E não percamos jamais o olhar inaugural, porque, perdido o primeiro olhar, todos os outros serão para remover, dia a dia, um encanto, no delicado equilíbrio entre admirar e luir, entre devoção e indiferença. Pois, sabemos que o que salva é frágil, impreciso, mas o que mata é exato. Seja a dor ou a palavra feia, que nunca erra no peito, o coração.
Mesmo que as fragilidades golpeiem as ilusões, e amar seja um risco, eu vos peço, que não se desfaçam das redes de pescador. E , agora, que é dia dos namorados, refaçam a multiplicação dos peixes. E nunca mais deixem que em seus olhos de tantos mares , de danças rituais, se erija, apenas, a aspereza da realidade. Pois, em algum lugar, te aguarda, como um feitiço, um vento que corteja a lua, alguém, para reinaugurar em tu, o milagre do amor.
Benditos os navegantes de antigamente que acreditavam que a terra acabava na linha do horizonte, de onde cairiam, mas que nunca deixaram de lançar seus frágeis barcos nessa direção; bendito os que pintaram mensagens nas cavernas acreditando que um dia seriam lidos, ainda que sequer soubessem se haveria amanhãs; benditos os catingueiros do árido sertão, marcados pelas sete adagas de anjo, que nunca se mudam de sua terra, porque não hesitam, não duvidam, que o tempo da chuva e dos ventos será alcançado.
Benditos os que não deixam de semear suas roças, ano após ano, sem praguejar contra os deuses ou a sorte, sem deixar de recomeçar, com mais cuidado e mais esperanças, as leiras do inverno que ainda vem, ainda que tarde a chegar
Bendito os que não tiram os céus dos olhos. Os que confiam. Os que acreditam na própria imensidão e percorrem suas léguas. Bendita as cartas de Maria do Alcoforado, bendito Shakespeare e seu soneto CXVI, Romeu e Julieta, Othelo e Desdemôna, bendito meu coração que envelheceu sem ceder ao outono.
Mas agora, que são outros os anéis de Saturno, que a lua não tem dragões, que domaram o sal do mar- tanto sal, tanto mar- e tudo é substituível, como amar a mulher que desistiu das eternidades?
Como amar, na estreiteza de seu peito, se não guardam a perenidade que desfaz os incrédulos; se não tem o desespero de quem faz sua lavoura arcaica, sabendo ser única, a colheita da boca; se não têm fé e não talham a pedra da caverna para serem lidas em outras vidas e nos reencontros?
Como amar, diante de um tempo de tantas incertezas, da urgência de tudo, e da alma liquefeita? Como nunca partir dos cais se cais já não há, nas oferendas delas?
Como amar sem tabuas de salvação, se tábuas, já não há, e permanecer entre os disfarces de amor, se ele já não arde sem se ver? Como amar uma mulher, se elas, antigas fiandeiras, já não tecem o fio do destino, e, delas, de suas margens, já não podemos nos atirar em nossos frágeis barcos de homem ao mundo que acaba no horizonte?
Bendita seja, a que resiste e não reza nas cartilhas do líquido e temporário..
Entre os que adoram e os que odeiam sua música, um verso dos Tribalistas vai se fazendo ícone gramatical de um modelo de comportamento. O “sou de todo mundo e todo mundo é meu também” é o atual grito de guerra e liberdade sexual e amorosa, se é que podemos falar de amor quando todo mundo é de todo mundo e ninguém é de ninguém. Mais que um jogo de palavras, as entrelinhas, o rito contido nos versos, desnudam a falência do compromisso, das parcerias em comunhão, do sal e do sagrado nos encontros tecidos ao acaso. O amor acabou, ou pelo menos é isso que querem nos fazer crer, afinal o corpo- e meu corpo minhas regras- tornou-se um espaço de compartilhamento sem compromisso, um acampamento de sem terras na alma do outro, e o tema sequer é recomendado ao ofício dos poetas, prestando-se apenas à pobre ocupação dos cronistas dominicais.
Como acontece com todos nós que passamos a envelhecer com o dobro da rapidez de antigamente, cheguei atrasado nesta revolução tribal e “para sempre” me parecia uma ilusão amorosa cabível em todas as bulas, ainda que a serpente e o paraíso tenham nascidos ao mesmo tempo.
Contrário ao inevitável, embora a nação tribalista torne equivalentes os toques, a sensação de re-encontro, e completude de si mesmo no ter o outro, ainda acho que só um(a), único(a), pode completar a tradução final de todos seus ensaios e de todos os sinais que decifram sua linguagem, a sua alma de dia chuvoso.
Porque é assim, sabem as mulheres. Contra todas as probabilidades e as variações da fome, e, às vezes, contra as recomendações técnicas de suas razões e de suas possibilidades, você, “de repente, não mais que de repente”, por uma canção, um olhar, uma dança, um som de violino enfeitiçado, se perde, se deixa domar enlouquecida e indefesa, por aquele outro. Dure cinco dias ou anos.
Quem encontra esse caminho sabe que nunca mais vai poder voltar. Ou, pelo menos, não inteira. Sabe que as pegadas sobre o vento não deixam marcas visíveis ao retorno, que não há fios de Ariadne a conduzir sua salvação. Ao contrário dos outros náufragos, não poderá ser resgatada. E quando rasga a roupa e os limites e prova, enfim, das dores e delícias de ser mulher, descobre a especiaria que é viver. No deslumbramento de loba indefesa, quer apenas ficar na armadilha, e, mesmo sabendo que tudo é renúncia, conjuga senzalas e senhores e não será mais de ninguém, sem ser dele. Ou ele, de uma mulher.
Ainda que se parta, que andeje por todos os lugares, sabe que será aquele seu mestre de cerimônias, referência emocional, e, mesmo sendo tribalmente de todos, ou de um, será em todos, ou em um, ele, ou ela, também.
É a condenação e a glória da paixão. Abandono e perenidade. Letra, música e lágrimas. Como nódoa, não se desvencilhará deste segredo da memória, dos nós, dos dois, porque como sabem a ciência e a filosofia de bar, quem se reparte, só o faz a partir dos seus domínios anteriores, já, todos, possuídos.
Você, se já provou do veneno divino de amar assim e ele acabou antes do fim, por alguma razão ou por falta delas, sabe que existir será apenas um despedir sem fim. A sensação de que falta algo, que inquieta. Quem te encontrar depois, ao contrário da apologia dos tribalistas, saberá que se pode ser só de um, ou de uma, mesmo estando em outro alguém, e que te lerá, apenas como a dor do achado tardio. Porque, como diz Adélia Prado, “o que a memória ama, fica eterno”.