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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 15h 56
O calçadão do Porto Barra, a mais icônica praia, de Salvador, revitalizado pelo prefeito, testemunha que a cidade precisa ser pensada para as pessoas. Reformada, tornou-se ponto de encontro e lazer. Eu mesmo, aos domingos, quando estou na capital, gosto de ir de uma ponta outra, vendo gente de todo tipo. Vez por outra, tomo uma água de coco, revejo as águas límpidas onde vi o mar pela primeira vez, aos dez anos. Ou me distraio olhando a areia onde um grupo de idosos estabeleceu sua arena e disputa um saudável jogo de petecas. Noutras, acabo no novo Barravento, para tomar um caldo de sururu enquanto observo a escandalosa beleza do mar, ali.
A vida segue, então, simples, afetiva, distraída, e isto não é pouco nestes tempos de conexão continua, tensão virtual e vigilância permanente. Sim, porque o mundo não tem mais lugar para distrações, inocências e permanências. Somos transitórios, em permanente autopromoção e, cada vez mais, desprovido de singelezas. A delicadeza, esta especiaria que a educação e a generosidade deram ao humano, está sendo substituída por uma objetividade igualitária e engajada, que apenas enfeia e empobrece a convivência e o cotidiano. Somos, cada vez mais, mergulhadores do raso.
Aos poucos, estamos nos convencendo que nada é perene, portanto, se falível, findável, não é merecedor de investimentos que custem esforços ou doação. Condicionados a receber, antes de dar; certos que temos direitos permanentes de admiração; vamos escasseando as relações, emudecendo dizeres e elogios desinteressados.
A extensão da desfiliação dos sentimentos é tão grande que, nós, todos, pragmáticos da sobrevivência, estamos nos deixado contaminar por esta forma de ser e nos isolando, nos tornando duros e reativos, secos e de poucas emoções profundas. Em permanente autodefesa, vamos desaprendendo os gestos que iluminam o dia de alguém.
Domingo, caminhava no calçadão da Barra, quando, em frente ao Edifício Oceania, um senhor, fez aquela curva, de bicicleta, meio desequilibrado. Passou por mim e logo adiante caiu. Era uma daquelas bicicletas que agora se aluga nas ruas e ele, claramente, tinha idade avançada e alguma dificuldade para manter-se aprumado.
Alguém, mais próximo que eu, o ajudou a levantar-se. Ele não se constrangeu, justificou algo, mas foi preciso que o rapaz o ensinasse em que posição ele colocaria o pedal para facilitar recomeçar a andar. Era visível que estava com pressa e disposto a continuar. Foi então, quando ele se preparava para sair, que o rapaz recolheu algo do chão, que havia caído da pequena cestinha presa ao guidom, e lhe entregou: um ramo de flores.
Ele o pegou, agradeceu muito, recolocou no lugar e saiu titubeando, mas em frente, em sua bicicleta. Nunca vou saber quem ele é, nem para quem havia comprado o ramalhete, mas, pela rapidez, e cuidado, era certamente alguém que ele tinha desejo e urgência de encontrar, e agradar, até mesmo se arriscando a pedalar já sem muita habilidade.
Foi assim, o sol e o mar, por testemunhas, que o velho ciclista anônimo, me lembrou que a vida não estará perdida enquanto alguém oferecer flores.
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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 15h 55
Não caminho sem avarias, mas não atiço lamentos. Não margeio perdas ou danos. Não cobiço sesmarias além daquelas da alma. Celebro as especiarias, os pratos elaborados, o maturi, a abóbora com leite, e as taças da embriaguez. Os abraços dados, em silêncio, ou comunhão; as palavras que confessei onde se confessava palavras, e muitos de mim habitaram.
Sou de melancolias e solidões, mas um amigo perdido me dilacera. Cometi vilanias - demasiado humano-, mas apanhei mais que o merecido. Tenho sérias reclamações a meu respeito, mas sou bom filho e pai. Toquei, por vezes, ah Deus, o inacessível chão, como milagre pessoal. Fiz-me, nem sempre por escolhas, mas, sim, por arrebatamentos. Ouvi música, como reza, e dancei imaginariamente o infinito baile dos corpos.
Não sei muitas coisas simples, que todo mundo sabe. Sou de rara inabilidade, mas tenho coração. Afirmo, com certeza, ainda que cambaleante. Sou de boas intenções, embora saiba que o inferno tem algumas minhas. Embriago-me com tanto da vida: a roça com um verde virgem, quando chove; cartas em papel, um ciclista que entrega flores, papel jornal, os textos que invejo não ter escrito, ruas de pedra, vestido de flores, vinhos de sobremesa.
Coleciono sinos dos lugares que vou, imaginando que dobram por mim; amo doces e sou perene com o de tomate. Quero as coisas certas, bem feitas, mas sem exageros doentios. Sou de sol, lua e neblinas. Peixes, do segundo decanato. Com ascendente em esperança. Sou.
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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 15h 53
Cultivar o deserto como um pomar às avessas, ensina João Cabral. Minha mãe não conhece o verso, mas é possível que o verso saiba de minha mãe. Ela tem 87 anos, mais juízo e disposição do que eu que venho avariado de vários avarios e ventanias. Por isso admiro a disposição com que todas as manhãs ela sai da cidade onde mora e vai pra roça passar o dia -às vezes, vai e volta duas vezes-, cuidar do quintal onde planta de tudo que em se plantando a terra dá. E rosas.
Sim, minha mãe planta rosas. Ela sempre plantou rosas. Até nos dias em que nada era possível plantar, ela plantou rosas. Às vezes açucenas, que minha mãe é de jardins e hortas, mas, sobretudo, rosas. Amarelas, vermelhas, grandes, pequenas, brancas, e rosas rosas. A vida inteira ela nunca deixou de plantar rosas. Nas tempestades e nas calmarias; nos dias perenes e nos escassos. Se lhe tirassem um jardim, ela plantava em caqueiros; se lhe faltava caqueiros ela plantava em baldes, até que se inaugurasse um outro jardim, todo dividido com tijolos, em leiras, com folhas pra rezas- sim, ela é dessas- chás, hortaliças e canteiros de rosas.
Sim, minha mãe sempre plantou rosas. E sempre riu nas pétalas. Muitas das folhas não passavam simplesmente de gargalhadas. Era muito fácil de ver. Meu pai não sabia enxergar isto e apenas olhava achando aquilo uma perda de tempo, mas deixava. Uma ou outra que podia parecer um choro, uma dor, nunca vingava. Esta, era logo trocada por uma ainda mais viçosa, resistente, bela, de textura delicadíssima e perfume terno, destas que até o orvalho, pela manhã, tem lamento de cair e se arrepende de seu destino de evaporar. Eram as minhas preferidas. Umas eram orgulho, ou travessia, outras eram esmero- podadas, polidas, adubadas- e, algumas, eram verdes, apesar dela dizer que nunca plantou rosas verdes. Estas, acho que só eu as vi. Umas eram rosas confessadas, outras eram distância e falta, mas eram todas flores da senhora das rosas. Às vezes, ela dizia: olha como está linda, olha, olha, admirada e a rosa, por vezes envergonhada, enrubescia.
Depois que meu pai se foi, lá na roça, encompridei o quintal, lhe dei um jardim. Desde então, todos os dias, ela vai pra sua arcaica lavoura de regar o deserto , semear, enredar a terra no ofício de fazer seu pomar avesso, e plantar muitas rosas. Ela as colhe a cada dois ou três dias para colocá-las aos pés dos santos de seu quarto e na pequena gruta na entrada da casa, onde ficam os outros. Minha mãe planta rosas e as oferta aos santos. Algum acordo ela há de ter com eles. Eu não sei o que é, mas desde que vi uma rosa verde por lá desconfio que tem algo a ver comigo e os meus. Minha mãe planta rosas. Ela sempre plantou rosas. E eu não sei nada de fé e amor que se pareça com mais do que isto.
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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 15h 53
Ao que parece não só de poeta, médico e louco todos temos um pouco, mas, também, de conselheiro, filosofo e guia espiritual o universo está lotado, numa proliferação desenfreada como praga em capim. Talvez a vocação tenha nascido com o homem, logo depois do primeiro pensamento, ou da primeira carne assada no fogo primordial. Assim que a primeira faísca organizada e consciente percorreu os neurônios o homem primitivo deve ter pensado: quem sou eu, o que eu vou comer no jantar, e como posso ajudar aquela homo-sapiens gostosinha a se sentir melhor.
A partir daí a coisa só tomou corpo havendo gravuras nas pedras que não passam de relatos de autoajuda e valores comportamentais. Evidente que, com a migração pelas savanas e o canibalismo dos tiranossauros, nenhuma filosofia durava, até que, Thales de Mileto, lá pelos anos 600-500 a.C. organizou a bagunça e passou a ser considerado o primeiro filósofo. Ele dizia que muitas palavras não indicam necessariamente muita sabedoria – o que prova seu imenso senso de observação- e que devemos esperar de nosso filho o que fizemos com nosso pai. Confesso que torço para ele estar certo.
A nossa vontade de guiar a humanidade - quando não sabemos guiar nem a própria vida - é atávica e cada um tem uma filosofia para chamar de sua. As correntes se dividiram em tantas que só com mapa náutico é possível navegar entre elas, socrático ou existencialmente, e, não se sabe bem, até agora, se elas contribuíram ou desnortearam ainda mais a humanidade. Como positivo, ao menos, geraram o divã, o café filosófico, algum sexo consentido, e alimentaram o comércio de livros.
Eu mesmo escolhi uma para seguir, embora o autor seja desconhecido. A de meu pai. Um gigante. Quando perguntaram a ele como ia mandar um filho de dez anos morar sozinho em uma pensão, em Salvador, sem telefone, sem conhecer ninguém, ele resumiu o que daria inúmeros tratados, uma cátedra, talvez, prêmios, em um precioso aforismo: o que precisa ser feito, tem de ser feito.
A realidade é que se fizéssemos o que precisa ser feito a cada momento a vida seria mais objetiva, conclusiva, realizadora, e com menos sofrimento. Sua adesão ao princípio lhe trouxe alguns desgastes, mas o levou ao sucesso e ao que buscava.
Confesso, algo frustrado, que não tenho a mesma aderência e que toda vez que não o sigo tenho um custo maior do que se tivesse executado seu enunciado filosófico essencial e que recomendo a todos para vivam melhor: faça o que precisa ser feito.
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César Oliveira - 30 de Abril de 2019 | 20h 59
Verdade que os príncipes já não andam em cavalos brancos, são cada vez menos nobres e as mulheres tem preferido o ronco do motor ao trote do eqüino, mas nem por isso devemos deixar de acreditar que, em algum lugar, a vida é feita mais de encontros do que de desencontros, e uma mulher te espera de vestidinho e flor no cabelo com um sorriso de infância e certezas de uma vida inteira.
É certo que os cientistas com seus aparelhos de positrons e dosagens de neurotransmissores andam a desmistificar a paixão, a transformá-la numa reação química de serotinina e dopamina, com validade máxima de três anos, mas nem por isso vamos deixar que levem para o cérebro nossa memória de amor. Não desembarquemos da nossa Arca de Noé imaginária, em que as espécies entram aos casais e sobrevivem, juntas, muito além do dilúvio e repovoam nossas esperanças, mesmo sabendo que os advogados, já não esperam sequer que passe a chuva das mais brandas, urgente que é, partir do outro.
É imprescindível que possamos manter a capacidade de renúncia sem ressentimentos, alegações, ou juízo de valor, e a humildade de andarilhos de sandálias, que deve ter quem jura, aos luares, à boca faminta das noites, ou aos suores dos corpos que é sim, o amor, que lhe toma como viagem e sina.
Decerto que, por vezes, já nem há mistérios na mulher que desabotoa o vestido para um homem, tantas vezes que o gesto se repete; e os homens sequer sabem que as estrelas oscilam todas, de leve, no céu, quando ela, somente ela, a mulher de tuas procuras, te chama para dentro do seu próprio destino e gozo, mas nem por isso deixemos de acreditar nas lágrimas das que choram nas entregas, nas confissões dos amantes impossíveis, nem nos amores que se prometem eternamente, porque é dele, deste orvalho e barro, que precisamos para não nos tornarmos avessos ou secos de sentir.
Sei que é fato que o amor começa e acaba, às vezes, no mesmo passo de dança, mas nem por isso vamos deixar que nossas falhas de humano nos impeçam de reinventar o sonhar de ontem, e exercitar o pertencer. E não esqueçamos que jamais devemos perder o olhar inaugural, porque, perdido o primeiro olhar, todos os outros serão para remover, dia a dia, um encanto, no delicado equilíbrio entre admirar e luir, entre devoção e indiferença. Pois sabemos que o que salva é frágil, impreciso, mas o que mata é exato. Seja a dor ou a palavra feia, que nunca erra no peito, o coração.
Sei que é difícil, que as fragilidades são golpes nas ilusões, e que não sabemos o cultivo exato para amar e permanecer. E que, vida inteira, parece, a cada tempo, longa demais, mas vos peço, como quem já cruzou às águas turvas e morou no lado sagrado do coração, ah, eu peço mulheres, não se desfaçam de sua rede de pescador.
Agora, que é dia dos namorados, amem e refaçam o milagre de multiplicação dos peixes. E nunca deixem que, em seus olhos, de oceanos perdidos e enfeites de corais, de danças rituais, de vagas infinitesimais, se teça, apenas, a aspereza da realidade. Pois, ao lado, ou em algum lugar, vindo de todas as encarnações de espera, te aguarda, como um feitiço, um vento que margeia e corteja a lua, não mais teu príncipe a cavalo, que os tempos são outros, mas o homem pra teu melhor amor