Meu pai fez muitas coisas: foi comprador de fumo, fez trabalho de empreitada, foi administrador de fazenda, salgou couro, foi açougueiro, e, por fim, fazendeiro. De tanto salgar couro o sal roeu todas as suas unhas, motivo pelo qual sempre me lembro dele, de sua tatuagem da escassez, como o homem das unhas de sal. De algum modo, ainda que sendo menos que ele, sou seu legado. Sempre somos um legado, até quando falhamos.
Não sei quantas coisas sou, tenho, ou carrego, disso tudo, para o bem e para as minhas limitações, mas tínhamos um gosto em comum: carne de carneiro. Não com esse nome de carret, dos franceses esnobes, mas de um carneiro novo, um burrego, que ele gostava de comprar em Irará. Dizia que o clima favorecia carne de criação por lá, motivo pelo qual, de Jeep, e depois de Rural, íamos no sábado de manhã, bem cedo, à feira daquela cidade. No mercado municipal ele conhecia, e era conhecido, de quase todos, e escolhia sabendo o que fazia. Costela, um coxão inteiro, que minha mãe- com maestria de cozinheira falada e refalada- fazia.
O coxão, preparado de véspera, lentamente assado ao forno, tem uns segredos para o tempero ficar na carne – e não vou entregar assim de bandeja- que só ela sabe, e ainda faz. A carne vinha à mesa, desmanchando, de modo que nem precisava da faca para separar, de tão macio, tenro, capaz de converter abstêmios em glutões. A crosta, em cima, era uma assinatura. E ainda tinha o meninico, o sarapatel- que de tudo o carneiro produz delícias- que ela explorava ao máximo. Acho que era do tempo que se conquistava o homem pela barriga. Hoje, em verdade- nada contra- temos outros considerandos e atrativos.
Quando fui passando para a maioridade continuei indo com ele só que dirigindo a Rural e depois uma Belina. A estrada ainda era de terra, o carro sem ar, e íamos resfolegando na poeira, no cascalho, subindo e descendo o vidro quando passávamos pelas marinetes da Irará Transporte, de Reginaldo, um amigo dele, e na qual viajei muito entre sacos de feijão, galinha, gaiola, bocapiu, rolo de fumo, cabaça, e tudo mais que pudesse viajar naqueles ônibus, inclusive duzentos passageiros em pé, embarcados em duzentas paradas.
Com o progresso a estrada foi asfaltada, mas era desses asfaltos biodegradáveis, que enriquecem donos de borracharias, empresas de engenharia, e governantes, com seus contratos. Pois então, dia de ira de meu pai era quando íamos de Coração de Maria a Irará e o asfalto parecia uma tábua de tiro ao álvaro, de tanto buraco. Com a paciência que lhe era peculiar e um método pedagógico próprio de ensinar o filho ele me cobria de impropérios cada vez que eu caia em um buraco, sendo burro, o mínimo, o que, refletindo hoje, e considerando o que já fiz, o deixa coberto de razão.
Com o tempo eu próprio já escolhia o carneiro, e isso, certamente, é um incontestável atestado de maturidade e maioridade, pois, não é qualquer preparo que permite a sabedoria de identificar um burrego verdadeiro e não levar gato por lebre, ou botox por gatinha.
Pois bem, há mais de 50 anos vamos para as bandas do Irará, aos sábados- um gosto que minha mãe conservou- em busca de um sabor da memória, depois que ele se foi, e a cada chuva, ano após ano, o asfalto derrete e esburaca do mesmo jeito, como atualmente, mostrando que parece haver coisas que nunca mudam: o carneiro do Irará e as obras viciadas.
A grande desistência já está à margem do mundo
e os dementadores já espreitam as covardias e a queda
– anuncia o demônio, em suas falas de ordem-,
e o que resta, nos homens, não é mais que engano.
Não é mais que essa marcha trôpega e estúpida.
Não é mais que apascentar sua ridícula criatura,
de servidão arcaica, vitórias falsas, títulos inúteis.
Não é mais que a deslealdade e suas ruínas,
não é mais que as almas taciturnas, de tédio e sentido,
à sombria tarde do ocaso e do desespero.
Em todas as coisas feridas:
a pátria e seus porões,
a pátria e seus poderes,
-tudo que é terrível demais-,
a cumplicidade dos exploradores,
os abusadores da autoridade,
e tudo que faz o esboço interminável da pátria.
O fruto maldito de toda escravidão,
e o exílio dos necessitados.
Deus, os limites das leis,
teu débil nome que os servos dizem em vão,
e a cisma que nos assombra,
dos inexplicáveis silêncios de Deus,
e sua cria, a quem tudo é permitido.
A fome de tudo, e a fome,
primitiva, a fome, e só, que a fome não exige
nada mais que seu próprio horror.
Os anunciadores da morte, e a banalidade de suas
guerras, sem culpas e remorsos, sem sequer um silêncio.
Os corpos sem exigências de amor,
e tudo que não é perenidade.
O desabamento do pai e suas certezas de pai.
A cigarra nas folhas do capim,
e os jardins de cinza e venenos.
Em tudo, a mesma corrosão.
O motim de desavisados,
a liberdade de festim,
a mesma falta de razão,
a mesma língua incompreensível de homem a homem,
e dos antepassados, em seus leitos secos.
E tudo que nos desossa:
a vaidade, o poder, a indiferença;
o inferno da existência compartilhada;
a soberba, a ganância e seus cortiços de glórias;
e nenhuma verdade, nenhuma verdade inteira,
nenhuma verdade que lave os olhos no orvalho da manhã,
sem secá-lo.
Os amores de giz,
e todas as posses que sequer custam o nome,
ou a memória.
Os amantes que sem miséria ou glória,
resultam inúteis,
todas as incertezas de amar em dias tão frágeis,
e a vida sem compaixão.
Os enfermos de poder,
os senhores infalíveis,
os que não hesitam meios,
fins,
nem mutilações.
Os que marcham para a morte, sem terem vivido
a sua hora de homem.
Os amigos que caíram.
As léguas de solidão dos cegos pelo rancor,
e a temerária ira dos traídos.
As dores de todas as vítimas,
imperecíveis.
E resta o açoite das palavras,
todas as outras coisas vãs,
as rosas cálidas, de Outubro,
e a derradeira esperança,
de não aceitarmos viver em subterrâneos,
fracos e amedrontados,
para que a vida e seu canto bárbaro
ocupe o ermo inabitável
dos corações,
desfaça o escuro em avesso,
e debulhe a casca, o seco,
a nódoa,
que entranha a alma, feito poeira sobre o móvel,
às três da tarde.
E arranque, do chão, o outro,
Lave, das ruas, o estrume seco
do homem.
E acorde, em outra manhã,
dos dias à míngua.
Eu sei e vocês sentem nas estações da alma que é Setembro, embora haja flores, no entanto, que desobedecem ao calendário, florescem em Abril e lançam seu perfume por uma vida inteira. As folhas do outono que forravam o chão, cedendo ao frio, são varridas. E nas manhãs de minha aldeia e do meu coração a neblina não cobrirá mais o sono dos que se tardaram amando.
Há, pressentimos todos, depois do longo e opaco outono, urgências de flores. Há extrema urgência de flores. Precisamos semeá-las em cada despedida para que não esqueçam que não é partir que afasta, mas não deixar cativo o espaço da volta. Precisamos de flores, pois, Setembro, sempre foi longe demais.
Precisamos das leiras dos olhos para semearmos lírios, jasmins, girassóis amarelos, açucenas e delicadas acácias, que sempre guardamos. E rosas. As rosas vermelhas, as rosas negras, as rosas amantes. Precisamos de mãos de jardineira, replantando os frutos das amendoeiras, pois, novas chuvas virão. As ruas de minha alma- as existentes, e as inventadas-, e a Getúlio Vargas, de minha cidade, irão florir seus flamboyants e a vida se iluminará de outro sol e tons.
Agora, que em algum lugar o mundo dorme exausto de existir, escrevo como se fosse minha primeira carta de alfabetizado , só para avisar que Setembro não é longe demais e que é preciso que se dê, urgentemente, por inaugurada, a primavera, em nosso peito e nos corações, para que se possam semear, ou dar posse, às últimas esperanças de amor.
A mídia já começa a anunciar - nesse longo Agosto-, o Dia dos Pais, menor em marketing e importância do que o Dia das Mães, o que, nos dias atuais, é inaceitável, motivo pelo qual exijo ser tratado igual a uma...mãe, na falta de alguém mais bem tratado.
Vez por outra, com os filhos longe, me pergunto se fiz as escolhas certas, se dei os exemplos adequados, se fui capaz de defendê-los como deveria, e libertá-los, como necessário. É que os tempos andam tão estranhos e os educadores de miolo mole embaçaram a figura paterna por uma igualdade politicamente correta, como se para compor um filho fossem melhor duas mães, afinal, o vendido é que masculinidade é tóxica, autoridade é ditadura, valores são relativos, e família não é importante, porque é disfuncional.
Sou de poucas lições, que não passo de um besta diante desse mundo, que até me envergonho. Na escassez, sinalizei o que pude: não tenham o que não puderem, não devam nada a ninguém, nem gastem tudo que tem, nunca se deixem dominar, sejam do bem, façam o que tem de ser feito, guardem a quem amam, tenham cuidado com o que não pode ser desfeito. Não é verdade que manga com leite faz mal, mas é verdade que tirar a colher da boca e botar em uma comida com molho, faz azedar. E que há coisas monumentais e imutáveis: o ciclo do sol e da lua, o fluxo das marés, a estreia da primavera. E filhos.
Sei que descobrirão que aqui e ali, viver, dói- a vida, e o amor, aprontam surpresas-, mas o otimismo é sempre melhor que o pessimismo. Tenham fé na bondade e resistam. Resistam que a vida vale a pena. As alegrias são maiores que as dores, o bem dos amigos é maior que o mal dos inimigos, a beleza é maior que a feiura, as decepções são menores do que os deslumbramentos da existência. Não fiquem só. Cuidem dos amigos, e façam sim um mundo melhor, sem medo, porque o medo é a armadilha dos sonhos. Nunca se recusem a dizer algo de bom a alguém, que a gentileza é um bálsamo. Durmam oito horas por dia, estudem, leiam. Ler foi meu fio de Ariadne, me guiou, e me deu os melhores momentos de minha vida. Eu nada seria sem as palavras. Nem pai.
Tenham filhos, que ter filhos, apesar de imprevisível, é o único milagre genuíno. E sejam seus cúmplices, mas sem abrir mão do que lhes cabe nesse latifúndio. Conte-lhes histórias- quem sabe aquela do barquinho medroso-, ensine que o trabalho não cansa, e realiza, e, mais tarde, que nem todos os vinhos são iguais. Ensine-os, embora a vida seja sempre inaugural para cada um, e um dia eles dirão ao próprio filho: seu avô dizia isso. E será a senha para permanecermos juntos.
Faça com que aprendam que a primeira coisa que se diz na casa do pai- ou Hakuna Matata-, é bom dia. E contemplem a vida como se fosse iluminada por mil faróis. Ela é. Sejam seus mirantes.
Por fim, um pedido. Cuidem daqueles ipês e flamboyants que plantei em nome de vocês, lá na roça- ao fim, sou só mais uma árvore de lá-, e quando eu tiver partido-espero que não cedo demais-, se puderem vez ou outra vão por lá na minha morada derradeira. Sentem no banquinho que vou deixar. Filho se puder toque uma música que amo lhe ouvir. Filha se você não errar o caminho, chegar lá, e vier uma lágrima, não se importe. Ela servirá para aquecer seu coração.
E onde estiver eu saberei que vocês fizeram de ser pai o terreno sagrado em que vale a pena pisar.
Fui criado na roça, à luz do candeeiro, e do carro de boi. Aos dez anos, meu pai, em busca de educação melhor, levou-me para Salvador, para morar sozinho em uma pensão. Ele sempre dizia que o que precisava ser feito tinha de ser feito. Depois fui para Brasília, São Paulo, e voltei para Feira. Mas não para a casa de meus pais.
Criar filhos é remar o rio ao avesso em que invertemos o tempo e vamos mimetizando os papéis, durante uma longa mutação, até a derradeira de todas. Não são apenas as memórias, a apoteose de criador, o amor absoluto, que te consagra e realiza. É a esperança de nossa edição melhorada sem as fragilidades e as falhas que tivemos. Somos senhores da realização de lhes dar régua, compasso, princípios, para viverem, embora, por vezes, esqueçamos que os filhos nos decifram em silêncio e nos criam, mas à sua própria imagem e leitura.
Adivinhássemos o futuro, desfrutaríamos mais desta relação, desse mito da fé mágica, e renunciaríamos mais as exigências de fora para nos abastecermos dos seus abraços e descobertas. E, dormiríamos, nós todos, em histórias e fantasias intermináveis, apesar das dúvidas para achar a medida exata entre a firmeza que educa, a recusa da autoridade que estraga, e o amor que humaniza.
Criar os filhos, doer suas dores, rir de sua inocência, perder o sono na sua febre ou ausência, caminhar de mãos dadas numa praça ou num sonho, nos eterniza. Faremos escolhas por eles- nem sempre as melhores-, muitas vezes com intenções que temos com nós mesmos, esquecendo que a vida só se faz para seu dono. Cruzaremos a longeva e barulhenta infância e adolescência -o tempo mais doce do tempo-, às vezes sem perceber a progressiva e inexorável redução da dependência conosco. Acostumamo-nos com o barulho de suas vozes, agenda, lições, ocupação da casa, cama, espaços da vida, achando que será para sempre.
É que, embora não acreditemos e ninguém nos prove o contrário, filhos crescem. E partem. E farão de sua partida um remoer sem fim, deixando em seus quartos um troféu das competições, um som, um aroma de milagre, um diário esquecido, um vestido abandonado por ser infantil, em um vazio que parece nunca acabar de ser olhado.
Um dia seu filho mais velho irá embora, para a faculdade, e você sentirá que sua invenção de homem tomou rumo próprio e se lembrará do dia em que também partiu e pensará em infinitos conselhos que acabará não dando, esquecidos no abraço. Depois sua filha fará o mesmo gesto e sua ausência será chorada às escondidas, porque apartar, disse-me meu pai, nessa quarta, ao vê-lo no cemitério, precisa ser feito. E, então, rezamos as rezas dos rezadores, por eles.
Sem o ofício do cotidiano os horários se embrulharão, a casa silenciosa se ressentirá do revés, como uma árvore sem vento, sem folhas. Que não abriga, nem sombreia. E, nesta reinvenção do ninho vazio não teremos a bênção ao dormir. Ela que nos protegia, e não a eles. E os medos serão só nossos, sem a redenção primitiva que suas presenças nas manhãs. E não importa, se for a primeira ou a centésima partida, pois, todas reinauguram uma mesma falta, uma teia que nunca se fecha em definitivo.
Estaremos juntos nas férias, viajaremos, faremos muitas refeições em família, e, um dia, os netos atiçarão a árvore, mas eu sei - eu também não vim-, que filhos não voltam para casa.