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César Oliveira - 30 de Abril de 2019 | 20h 58
Ao fim e ao cabo, o que importa é que, para o bem e para o risco, precisamos nos sentirmos especiais. Não é a toa que curtimos os likes das redes sociais, nos expomos feito vorazes consumidores da admiração alheia, em busca do sim, da aprovação universal - ainda que falsa, muitas vezes- do público. O iphone, este símbolo da nova humanidade- sacada genial de Steve Jobs- completa dez anos, e podemos dizer que foi a criação necessária, na hora e carências certas.
Vivendo uma crise de baixa estima, de olhares ressabiados e rebaixamento de todos os padrões de existência- da música a filosofia, da dança a qualidade de vida, do tailleur a calça sauruel, da sedução que glorificava a performance sexual múltipla e insatisfatória-, somos salvos, apenas, pelo champagne e o cajado do novo guia eletrônico a abrir o mar vermelho da solidão para que a legião de solitários atravesse sãos e salvos estes tempos repleto de pragas ameaçadoras, incluindo o sertanejo universitário e a fotinha da facu.
Desaprendemos das perenidades, compensados pela fácil substituição eletrônica, entretanto, eu, velho dinossauro, derradeiro desta minha obsoleta espécie, a beira da extinção, ainda escrevo cartas em papel, telefono para meus filhos para que vejam a lua inaugural, arranco-os da mesa do computador para que olhem o por do sol e tenho varandas na memória, onde os amigos bebem vinho, tem lugares cativos e permanências atemporais.
E, para a sobrevivência e a navegação perigosa do viver é só disso que precisamos: fazermos os outros essenciais, para que, então, nos tornemos.
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César Oliveira - 30 de Abril de 2019 | 20h 55
Tem coisas que duram uma vida inteira para aprender: criar um filho, fazer chiclete de bola, lidar com a saudade. E, antes que acabe o dia- é seu aniversário- quero te dizer que estou aqui, pois, aos filhos, é o que basta de um pai: a certeza que ele está ali. Sei disso, pois, quando pequeno você dizia ”pai ô pai”, vinte e cinco vezes por minuto. Eu sei. Eu contei. Você não dizia nada depois, não havia pedidos. Talvez, fosse só para ter a certeza que estava realmente ali; talvez, apenas, para fazer o pastoreio do amor paterno. Filho, o primeiro. Filho homem.
Não sei se você é destes filhos que envelhecem rápido ou dos que levam reencarnações inteiras para isto, mas sei que é destes que botam o pé no mundo. Agora, mesmo, você está aí em algum lugar do outro lado dele, aprendendo francês – o primeiro em que não estamos juntos, nem com sua avó, que por arte do acaso nasceu no mesmo dia, ligando meu antes e depois-, e já não sou o governante de seu destino. Aliás, nunca sabemos se somos, se nos adotam ou rejeitam; se imitam, ou fazem o avesso; se nos admiram ou culpam. Talvez, mais provável, tudo isto.
Você mandou uma filmagem do Cavern Club, onde os Beatles começaram. Você sabe que eu queria ir. Agradeço ter lembrado. Deve ter sido das poucas coisas que ensinei: música boa, mas sem esnobismo. Gostamos de bossa nova; sim, Reginaldo Rossi, e disco de vinil. Certo que você retribuiu me revelando que aqueles pintores que eu admirava eram só tartarugas ninjas- Leonardo, Donatello, Michelangelo e Raphael-, me fazendo ver a verdade. Nunca mais consegui vê-los do mesmo jeito.
Sei que vivemos a velha e boa infância, os verões, lemos Harry Potter, e todas aquelas coisas de pais e filhos e suas jangadinhas e viajamos com a família. Ou nós dois. Deve ser isso a saudade de hoje. Não sei lidar com ela, mas toco em frente. Maduro, sou eu. Te ensinei a dirigir e repartirmos nossa incompreensão sobre as mulheres. Gostamos de ironia, humor fino, e vinho de sobremesa. Fui paraninfo de sua turma de formatura. Devo-te esta.
Você é inteligente, perspicaz, decidido, correto, familiar e leal. Fiquei amigo de sua turma de jovens e você, foi adotado, “mi hijo”, pela minha. Acho isso legal. Talvez, por isso, a saudade. Não sei lidar bem com ela. Maduro, não sou eu.
Um conselho:tenha paciência. Esteja preparado, seja justo e a vida se dobrará aos pés, ainda que se dê aos solavancos. Às vezes ela é como aquelas nossas idas a pizzaria, aos domingos, quando ficamos na dúvida: calabresa ou margherita? Viver demora uma vida inteira. Às vezes, mais. E, se precisar, filho ô filho, estou aqui.
Te amo, feliz aniversário.
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César Oliveira - 30 de Abril de 2019 | 20h 50
Sempre detestei sapatos com cadarços. O reclinar para dar o nó sempre me pareceu um desperdício de tempo e um esforço desnecessário, destes que não há razão alguma para se fazer. Lembro, no entanto, que minha mãe sempre me comprou sapatos com cadarços. Bem, não cheguei a amaldiçoar ninguém por isto, mas depois que passei a comprar meus próprios sapatos- ah, este momento que separa meninos de homens- só os comprei, lisos.
Também, nunca quis dez pares diferentes. Gosto de um, daqueles que se pudesse não tirava nem para dormir, que parece enluvado, macio, que se aconchega ao pé como se fosse um abraço sonhado, uma massagem permanente, na medida exata. Até ganhos alguns – creio que minha família não acredite que regulo bem, aliás, não vou dizer que estejam totalmente errados-, mas ficam lá, esperando um dia que justifique seu uso, enquanto sigo com meu companheiro, na saúde e na doença, no trabalho e no passeio, até sua exaustão, quando o trocarei por outro. Igual.
Dizem que as mulheres reparam muito nos sapatos masculinos e que eles anunciam todo nosso perfil, sucesso, recursos financeiros, e dizem a elas o que somos e nosso potencial. Confesso que temo o que devem pensar de mim olhando meus calçados. Talvez, tenha sido por conta desta escolha que nunca fiz sucesso com elas e a Paola Oliveira nunca me ligou para sermos bons amigos. Também não acho que casei porque o lustre do calçado tenha feito os olhos dela brilharem, aliás, é muito certo que ela não tenha reparado em meus sapatos.
Agora mesmo, quando escrevo, os pés estão meio para fora e os sapatos dobrados ao meio, o que lhes deixa uma marca permanente que só some quando passo um pouco daquele lustra-couro para enganar o envelhecimento. As cicatrizes do sapato, ao menos, me são possíveis.
Conta a lenda que foi o pintor grego Apeles que nos deu a recomendação: “Ne sutor ultra crepidam", ou,” não vá o sapateiro além das sandálias”, por isso respeito o abismo do que ignoro, conservo minha alma onde tenho meus pés e não vou aos corações e locais onde os meus velhos sapatos precisem de brilho, rigidez, ausência de vincos e feitura sem defeitos, para serem bem acolhidos.
Mas, talvez, talvez, tenha sido tudo a falta de cadarços.
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César Oliveira - 30 de Abril de 2019 | 20h 41
Assim como nossos heróis morreram de overdose, os sonhos coletivos estão morrendo também. Nossas melhores intenções- a liberdade, fraternidade, igualdade, o esforço como meio para o sucesso, o amor eterno e a barriga sem Chopp- encheram o inferno de fracassos.
A combinação de um protagonismo insustentável que torna o indivíduo um universo autocentrado, ávido de recompensas e retroalimentação, a consumir o pior de si em canibalismo autofágico, e a lenta, continua e irreversível perda do idealismo como um bem e motivação, foram luindo continuamente a sociedade e seus valores. Crescer tornou-se nada menos que despedir-se das ilusões, todas aquelas que um dia já preencheram nossas melhores ações e esperanças.
Os discursos civis foram traídos, a pátria foi apartada de nosso pertencimento, e a exposição nua e crua dos podres poderes retirou o glamour de muitos heróis revelando facetas nunca antes imaginadas. Privados dos mitos, sem fio de Ariadne, estamos adentrando o labirinto, sem guia de retorno.
Já não temos líderes, e a verdade é que está ficando cada vez mais impossível ser herói nestes tempos de escandalosa e incontrolável exposição. Não há mais segredos ocultos nas biografias e, também, já não lutamos pelos corações e mentes; no máximo, pelo fim de noite.
Não sonhamos mais juntos pelo temor que pareçamos tolos, que abusem de nós, e que o mais puro de nosso coração seja explorado pelos aventureiros e oportunistas. Compartilhamos apenas mobilizações momentâneas, refreados na nossa entrega plena pelas incertezas e medos. E o medo é uma ilha.
A modernidade líquida não é só desapego e volatilidade, mas uma individualidade bruta, arcaica, devastadora, que superficializa todo nosso legado de humanidade, dessacraliza nosso imaginário e nos tira a ambição da perenidade que sempre nos conduziu ao infinito e além. Já não erguemos altares, ou catedrais.
De algum modo, entre a cozinha gourmet e a falência das ideologias, fomos nos tornando o que nunca fomos: mortais.
Não sei o caminho, nem como se faz esta lavoura da salvação, mas sei que devemos voltar a cobiçar a eternidade, pois, os ventos do norte já não movem moinhos e nossos sonhos coletivos já morreram todos.
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César Oliveira - 29 de Abril de 2019 | 19h 42
A vida tem se tornado dura, exigindo um grau de esperteza que margeia o limite da desonestidade; e um grau de desconfiança, que só deveria existir nos sistemas de espionagem, mas que acabamos exercendo contra tudo e contra todos, pela sobrevivência.
Desejamos o sucesso sem esforço, e desaprendemos a rara sensação de realização por uma vida justa, e reta. Superficializamos nosso desempenho e potencialidades em troca da fuga da responsabilidade, da terceirização da culpa, do comodismo leniente e oportunista, como se ir em frente, não exigisse gasto, aprofundamento, resistência, e dedicação absoluta.
Deixamos a ambição do grande- que é feito de glórias e dores-, pelo apogeu do médio- que é feito de renúncia e mesmice-, como se a vida fosse uma oportunidade limitada.
Desaprendemos, o dever de agradecimento entre amigos e entre pais e filhos, como se receber fosse um direito e retribuir, apenas, uma opção. Tornamos líquido e optativo a preservação dos afetos e sólido e obrigatório a apoteose da individualidade, como se a permanência não exigisse lealdade, compreensão e, por vezes, tolerância.
Progressivamente, nos despersonalizamos, pois, viver, no padrão que estão nos impondo, exige uma voraz dedicação em repetir os modos, consumos, estilos, alheios, que de escolha própria, mal escolhemos a solidão. Nos tornamos acrobatas sociais e adotamos performances além de nossos próprios limites, pelo desejo de inclusão e similaridade.
A vida tem se tornado muito exigente, externamente, cara, intolerante, quase vil, e sem perenidade nos valores e sentimentos, como se fossem permutáveis quando, em verdade, são insubstituíveis pela memória que retém, signo, símbolo e cais que representam.
A vida tem se tornado dura, mas é preciso que nós, os que amam, os que se creem e se recusam a ter aceiros na alma, lutemos pelos altares, para que permaneçamos imperecíveis. No outro...