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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 16h 07
João Calça Curta, useiro e vezeiro na vida dupla, acostumado a agir com a habilidade digna de um congressista em disfarçar seu caixa dois, foi surpreendido ao entrar em casa pela súbita sede de Justiça da mulher que já foi acusando-o como se fosse uma Lava-Jato doméstica
- Você tem uma amante João
- Tá louca, só pode ser intriga de mulheres golpistas com inveja de nossa vida, nossas viagens de avião. Apesar de minha mãe ter nascido analfabeta eu pude cursar uma faculdade e dar esta vida a você. É por isso que odeio esta classe média conservadora, fascista. E tem mais: você não tem provas
- Não tenho provas, mas tenho convicção.
-Não aceito isso. O ônus da prova é de quem acusa. Não tenho nenhuma off-shore clandestina. Vivo me declarando a você. Isso é gente que quer nos expor e enfraquecer a instituição do casamento.
-Rose afirmou que você tem nudes dela no seu celular. Dava pra montar um PowerPoint.
-É mentira. Nenhum pretenso anexo desta natureza entrou em meu celular.
-Ela disse que você é o grande comandante das safadezas grupal. Vai dormir no sofá.
- Primeiramente, fora João é? Você não pode me tirar da cama. Eu te elegi para ser minha mulher. Isto é golpe. Várias amigas suas nunca comentaram nada com os maridos delas. Este comportamento seu é um ponto fora da curva.
-Rosemary me disse que você sai com ela para pedalar no parque. Bunito isto. Pedalar é crimeeee!
-Esta afirmação sua desrespeita a inteligência alheia. Só pode ter sido feita por bêbada. É coisa de cretina, pois é lógico que você não pode comprovar a materialidade do crime. Além disso, a prova obtida ilegalmente, ainda que de boa fé, é prova ilícita.
-Não venha usando conversinha mole destes procuradores por aí não que já vi vários destes heróis, mortos.
- Aquele corpo dela não é meu. Eu sou apenas usufrutuário.
- E não vai mais sair com esta quadrilha pro bar não. Até o caseiro viu você na casa das quengas.
- Você está fazendo isso baseada apenas no domínio do fato. Não posso ser extraditado do meu quarto. Sou réu primário, tenho endereço conhecido, não posso destruir nenhuma prova material do crime, e posso conversar qualquer hora que você quiser fazer uma deerre sobre o assunto. Não precisava mandar seu irmão medalhista do judô ter ido me buscar de madrugada no hospital. Tinha uma cirurgia da mulher de um ex-ministro. Isto foi condução coercitiva.
- Mentira. Escala não era sua. Alguém vazou que ele tava te procurando e você foi pro hospital. No sofá. No sofá.
- Tenho direito a embargos infringentes e você não pode impor esta pena sem estar tudo transitado e julgado. Vou recorrer aos tribunais familiares superiores
- Não pense que porque é seu paizinho e mãezinha eu vou aceitar argumento de foro privilegiado não. Desta vez você não vai sair impune. E tem mais. São 60 dias sem sexo.
-Não, amor, não. Dois meses? Vamos fazer o seguinte: eu faço uma delação e você me premia com a redução da pena.
- Hum. Quero o cartão liberado pra recuperar os recursos que eram meus e o rastreador do celular ligado o tempo inteiro. Uma semana sem sexo.
- Está certo.
- Amor
- O que é?
- Joga esta delação no lixo. Joga. Esquece a vigilância eletrônica e vem aqui pra cama vem, vem. Você se apaixonou por meu caráter, não pode aceitar este estelionato delacional.
Assim, isso, vem todinha, vem, pra seu malvado favorito...
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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 16h 04
Adeus é a palavra mais longa de nossa língua. Terminamos, sempre, antes que ela se complete. Por isso vamos acumulando faltas, receios da memória e desabrigos. Interessante que, na língua portuguesa, tudo de mais extenso sentido, é curto: Pai, Mãe, Deus, Morte. Início e fim. Por estranho, o que nos fragiliza e desprotege não é a ausência dos filhos- o permanecer para adiante-, mas sim, a dos pais- o fio de Ariadne. É deste mito, a caverna dos pais, que partimos, afinal, navegar é preciso, viver incerto, e o pastoreio que exercem é, por vezes, nossa única tábua de salvação.
Cortar um fio, inaugurar a orfandade da morte, migrar para o ermo do desamparo é um doloroso e irreversível tempo. Perdi meu pai há sete anos. Sete, eram as virtudes; sete, os mares; sete, eram as artes; sete, as ciências; sete, eram os sacramentos; sete, os pecados capitais; sete, as notas musicais; sete, os dias da semana; sete, o dia em que o Criador descansou; sete, os pedidos expressos no Pai Nosso. Sete, o apartamento em que moro e foi dele. Perdi meu pai e suas unhas de sal, roídas, todas, no tempo em que salgou couro no ofício de nos sustentar. O mais velho da longa família. Duro, exato, sem férias, inteligente, integro, brilhante, ao partir do nada, sem fios, e nos legar um nome. E saber tanto. De não nos dizer um dizer sem que ele se cumprisse.
Dizem as lendas que sete é a passagem do conhecido para o desconhecido. Hoje à noite, depois do trabalho – como o Senhor exigiria-, irei à missa que a família mandou celebrar em seu nome, no dia de sua morte. Nunca fui muito bom em rezas, como outras tantas coisas, mas rezarei os sete pedidos expressos diante dos seus ossos e pó- carne viva-, não por tu, temperado em desconhecidos, mas para que me responda e continue comigo quando for penúria.
Meu pai morreu. Mas, hoje não. Só amanhã.
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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 16h 03
De todas as emoções, talvez, a mais necessária seja a sensação de que algo, ou alguém, nos é imprescindível. Do que, feito especiaria, sentença escrita em pergaminho, nos seja essencial, do que não se desfaz mesmo exposto aos ventos das erosões milenares, ao açoite do desimportante, da fragilidade, e da banalidade, que teima em diluir, em esgarçar, as permanências.
A absoluta necessidade de um amigo que reme a mesma nau dos insensatos; que proclame heresias, se necessário, em sua defesa; que lhe exija estar à altura. Ou a absoluta necessidade de um amor insubstituível - não destes seriais que repetimos boca em boca, na carne, a cada partida do anterior- como se seu nome pudesse ser dito em vão, e não fosse um palavrão obsceno e condenável a ser inscrito num ritual de martírio e gozo, como quem vai erigir um monumento irrepetível, sem lápide, ou exílio; um amor cujas juras são altares, cujos louvores são cantos sagrados, cujas comunhões são abalos sísmicos, cuja partida, que a vida é arrebatamento, glória e miséria, é amputação indelével.
É precisão que uma lealdade, um princípio, um valor, uma crença, uma escolha, seja como o fio das três deusas que tecem o destino, como aceiro que nos baliza, e da qual, nada, nem a morte, nem a alma, nem a salvação, nem as dores das condenações, nos apartará.
Em tempos de rasura, sou apenas falta.
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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 15h 58
De todas as emoções, talvez, a mais necessária seja a sensação de que algo, ou alguém, nos é imprescindível. Do que, feito especiaria, sentença escrita em pergaminho, nos seja essencial, do que não se desfaz mesmo exposto aos ventos das erosões milenares, ao açoite do desimportante, da fragilidade, e da banalidade, que teima em diluir, em esgarçar, as permanências.
A absoluta necessidade de um amigo que reme a mesma nau dos insensatos; que proclame heresias, se necessário, em sua defesa; que lhe exija estar à altura. Ou a absoluta necessidade de um amor insubstituível - não destes seriais que repetimos boca em boca, na carne, a cada partida do anterior- como se seu nome pudesse ser dito em vão, e não fosse um palavrão obsceno e condenável a ser inscrito num ritual de martírio e gozo, como quem vai erigir um monumento irrepetível, sem lápide, ou exílio; um amor cujas juras são altares, cujos louvores são cantos sagrados, cujas comunhões são abalos sísmicos, cuja partida, que a vida é arrebatamento, glória e miséria, é amputação indelével.
É precisão que uma lealdade, um princípio, um valor, uma crença, uma escolha, seja como o fio das três deusas que tecem o destino, como aceiro que nos baliza, e da qual, nada, nem a morte, nem a alma, nem a salvação, nem as dores das condenações, nos apartará.
Em tempos de rasura, sou apenas falta.
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César Oliveira - 01 de Maio de 2019 | 15h 57
Estamos vivendo uma espantosa cultura da aparência, antes do conteúdo; do mostrado antes do vivido; do narrado, antes do memorizado. O registro externo dispensa a memória de guardar e imortalizar o instante, pois, ele será compartilhado e arquivado em nuvens e arquivos, tornando-se mais significativo não pela experiência per si, mas por quanto likes e curtidas conseguiu produzir. Já não somos o fato, mas a versão.
Desde que, em 2013, o Dicionário Oxford anunciou que um novo verbete - selfie- seria incluído em suas páginas tive plena certeza que o apocalipse da discrição havia se instalado e ovo da serpente tinha sido chocado. Lógico que muitos usam as redes para fins profissionais e há, acreditem, os que usam com moderação, mas a grande parte se dedica a um exibicionismo cansativo depois de tantas poses repetidas e pratos fotografados. A vida virtual, com todo seu falso glamour e felicidade, desperta inveja digna de merecer tiro, porrada e bomba, e torna-se impositiva de um estilo de vida impossível de ser sustentado. Todos, ao fim, querem ser iguais e a vida um enredo único e hedonista.
Para manter o ritmo – afinal, as poses sofrem de senilidade precoce-, e a vida atualizada, os usuários, especialmente os jovens, produzem fotos em quantidades industriais e exercem um apurado serviço de controle de qualidade da linha de montagem. Ao fundo, todos têm a esperança que sua vida editada seja tão atraente quanto o que achamos que os outros imaginam.
A geração fotoholic, como a denominei, é capaz de arriscar a vida por uma curtida. Pesquisas mostram que 33% dos jovens fazem selfie quando dirigem; há relatos de cirurgia pra aparecer melhor e, inclusive, inacreditavelmente, mortes : queda de ponte, edifício, chifrado por touro, eletrocutado em trilho do trem, baleado com pistola, caindo do Taj Mahal, em uma perigosa compulsão pela imagem perfeita. Segundo site americano as mulheres (entre 16 e 25 anos) gastam 5 h semana em selfie, com uma média de três fotos ao dia. Elas fazem 7 selfies antes de achar a melhor, sendo que 1/3 faz pose sexy para atrair pretendente, 14% usa selfie para causar inveja. O estudo indica que 72% dos entrevistados tiram fotos com familiares e amigos. Em segundo lugar está “eu com fundo de paisagem ou natureza” (34%), seguido de “eu sozinho” (29%).
Algumas pesquisas a ligam à insegurança e objetificação do indivíduo. Segundo o psicólogo Jesse Fox, “pessoas que têm um grau alto de auto-objetificação postam mais selfies, o que leva a mais feedback dos amigos online, o que os encoraja a postar ainda mais fotos de si mesmos.”.
O fenômeno cultural do “selfie” expõe cruamente o desejo humano de ser notado, admirado, reconhecido, o que flerta com o pecado preferido do diabo: a vaidade. Há uma mistura de costumes e informação, sendo uma expressão social que traz o risco de resvalar para o culto excessivo a aparência, transformando a vida em uma espécie de reality-show narcísico, com personais-seguidores - inclusive a Receita Federal-, que muitas vezes resulta em um ego inflado, por idealizar que tudo que o rodeia é aceitação e aplauso, sendo muitas vezes difícil escapar do autoengano.
Como em todo lançamento comportamental a geração fotoholic ainda precisa aprender a dosar o uso das opções da internet para saber a exata medida que separa compartilhamento saudável de obsessão vaidosa e suplemento carencial.