Dizem os cientistas que a vida nasceu na água, depois do Big Ben. Era uma sopa, uma espécie de caldo mágico, repleto de íons e minerais, nosso sal e pimenta bioquímicos. Deste lodo, na verdade da combinação de luz, calor, umidade e substrato, nasceu o primeiro organismo vivo, que não deve ter sido lá grandes coisas, muito distante de Afrodite e Apolo, que nos imaginamos. Junto com ele nasceu a fome, - afinal a sopa estava por ali mesmo- e foi esta que o fez devorar aquela canja, indigna de figurar nos cardápios franceses elegantes e com sabor de merenda escolar, mas nutritiva o bastante para nos fazer perpetuar a espécie, afinal como se diz aqui no Nordeste, tempero de comida é fome.
Acontece que, desde que o primeiro ser vivo, tornou-se vivo, ele já olhou para o segundo ser vivo com segundas intenções reprodutivas o que, mais tarde, com o apoio dos motéis, da indústria de preservativo e divãs de psicanálise, ficou conhecido como fome sexual. Como não tinham nada mais a fazer, nem uma revista de fofoca de dinossauros, um salão de beleza para atualizar a inveja, um programa decente na TV- mal antigo pelo que vemos- e sem planejamento familiar e mensalidade escolar, eles se dedicaram à única coisa que podiam fazer: reproduzir-se . A partir daí vocês conhecem a história. Adão não resistiu a Eva vestida de garçonete, com aquele biquíni sumário de parreira e sua fome atávica nos expulsou do paraíso – uma espécie de condomínio fechado com segurança paga - só para comer uma maçã.
Daí em diante, insaciados, vitimas do apetite eterno, passamos a disputar comida com gerentes de supermercados, navegadores e, em casos mais graves, com outros animais, nos buffet das recepções. Verdade que nem mesmo Cristo conseguiu matar a fome universal, ainda que tenha repartido seu pão sem agrotóxicos e seu vinho de safra divina. Aliás, depois deste milagre, ele preferiu ser crucificado a ter que sobreviver neste ramo, sem nenhum apoio a sua microempresa, até porque já estavam reclamando do serviço e pedindo um croissant, um pãozinho francês, um presuntinho pra acompanhar. Não, não, aquilo já estava virando um inferno. Melhor a cruz.
É por isso que desconfio que foram as necessidades da barriga e não as necessidades da alma que movimentaram o homem em busca do desconhecido e do elo perdido, ou pelo menos, da pousada mais barata e do comida a quilo. Foi a busca de alimento e de terras produtivas que pudessem ser invadidas e cultivadas para nos saciar, que nos levou de um lado para o outro, fez as cruzadas, o cinto de castidade e a riqueza das clínicas de estética.
Não fosse pela fome ainda estaríamos confinados à Mãe África onde o cozinheiro e a sopa eram melhores e não seríamos, hoje, esta diversidade do humano. Contrariando os filósofos e antropólogos que buscam um motivo nobre para nossa travessia existencial, acho que ela foi o grande graal de nossa evolução. Ou só assim podemos explicar essa fome antropológica, de primeiro organismo vivo, que nos consome, quando ela passa flutuando sobre o eterno, dentro do seu vestidinho, com olhos de mares antigos e apetite infinitesimal.
De volta a este futuro, Mcfly, descobriria que nos comunicamos muito mais e facilmente, embora de forma fria e menos afetiva. Constataria que a ira, a intolerância, os preconceitos, e as emoções humanas, foram despidas do silêncio protetor que a falta de exposição nos concedia.
Saímos da última caverna, acolhedora, e, sem pudor, nos lançamos ao espetáculo, feito tiranossauros vorazes a consumir a curtida e atenção alheia, levando ao extremo a busca da mais básica das necessidades humanas a ser satisfeita, que é a companhia, numa espécie de surto universal de carência.
Este despudor confessional não se consuma sem sequelas. Com as biografias sendo montadas em tempos reais e a memória implacável dos bytes, estamos nos (re)conhecendo muito mais e, o conhecer absoluto, vai desfazendo os mitos individuais e aluindo as admirações, fazendo com que se tornem mais frágeis porque a realidade costuma ser implacável com o humano, como, aliás, já observava o genial Millor: como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem.
Esta conexão sem recusas, senso, ou aceiros, nos coloca diante de dois abismos. Um, criado pelo engano da edição que faz a vida alheia ser um clip de virtudes e prazeres, um dolce far niente, vendido como cotidiano que cria a sensação de injustiça, inveja comparativa, gerando frustração e ansiedade, sem levar em conta que apenas cada um - e o tarja preta ! - sabem que nem tudo é a delícia de se ser o que é ou parece ser.
O outro, criado pela falta de editoria, e exposição exagerada, em desnudamento que vai demolindo imagens e referências - novamente Millor -, limando cobiças, formatando um personagem a partir da leitura enviesada, já que sem a interação dos olhos e do tom, e alicerçada na variável interpretação do escrito, construída nas entrelinhas ou sobre revelações de nossas falhas, pecados, preconceitos, ideias, frases, simpatias, opiniões virtuais, que antes corriam desconhecidas e das quais nos depurávamos, nos editávamos, lambendo nossas feridas em anonimato reparador.
Não somos mais o que somos, quando nos contamos; nem somos mais o que somos quando nos contam. Assim, estamos em risco permanente. E não haverá mais dia fácil.
O Brasil segue impregnado pela guerra culinária entre coxinhas e mortadelas. Um debate de afogados sustentado por interesses individuais e que não acrescenta um mísero tijolo no muro que separa qualidade de vida e vida sofrível. A grande tragédia não é a legalidade do impeachment, existente, de fato; a limitada legitimidade do atual presidente; o aparelhamento estatal ou a ocupação cultural por uma ideologia fúnebre e vencida.
A grande hecatombe que temos é a econômica, pois dela deriva todos os demais movimentos. No Brasil estamos em recessão, com PIB negativo por três anos, 12 milhões de desempregados. Imaginando que a cada um esteja ligado quatro pessoas temos 48 milhões de brasileiros sofrendo as dolorosas consequências desta crise. Crise esta que é responsabilidade direta do governo afastado com seu populismo insustentável, sua contabilidade destrutiva para sustentar o estelionato eleitoral que lhe conferiu a última vitória, e a submissão a uma ideologia econômica fracassada.
É preciso que entendamos que as grandes nações e impérios foram construídas com comportamento de gângster, incluindo os saques e espoliação direta de outras nações. Acontece que a democracia liberal avançou, a comunicação universalizou as fronteiras do direito- pelo menos como saber-, a colonização de territórios se tornou incorreta. Adicionalmente a vida foi se prologando, com aumento exponencial da população e o custo de sua manutenção crescendo geometricamente. Esta combinação de fatores tornou os recursos claramente mais escassos.
Ao lado disto, a complexidade das aglomerações urbanas vai se tornando avassaladora exigindo que estes escassos recursos sejam administrados de forma exímia, otimizada, para evitar o mínimo desperdício, gerando assim a possibilidade de garantia de um estado mínimo de manutenção das condições de vida. O tempo do desperdício, do improviso, dos recursos obtidos de forma predadora encolheu, e, há, ainda, milhões de pessoas e continentes a espera de serem incluídos nesta distribuição sob o risco de uma violência incontrolável, que, aliás, já torna até mesmo o mundo rico refém, vigilante, encarcerado.
Ao passo, entretanto, que esta administração pública passa a exigir gerentes cada vez mais qualificados, precisos, com domínio técnico maior, continuamos a escolher nossos administradores por características empíricas- carisma, simpatia, habilidade comunicativa, identificação pessoal- e não por características necessárias- formação técnica especifica, experiência administrativa, expertise, formação humanística- como se a administração pública atual pudesse se dar ao luxo do desperdício, da perda de tempo, de servir como laboratório de aprendizado. E o cidadão pagador de imposto como cobaia.
A democracia está anos luz de todas as formas totalitárias de poder- ainda que seja apenas o menos pior dos regimes-, mas não podemos mais tolerar administradores incapazes, falidos sedutores, que querem o poder para saquear os recursos públicos. Não podemos gastar milhões com cargos eletivos ocupados por eleitos que mal sabem ler, por vezes. Com a escassez de recursos a máquina pública exige eficiência absoluta.
Certo que não temos método para selecionar caráter, mas sou a favor de haver critérios de elegibilidade. Não estou fazendo apologia à república dos letrados, sei que a democracia tem em seu princípio a liberdade de cada homem poder ocupar o espaço público e que há um preço a pagar, mas não podemos ter uma administração de complexidade hercúlea e como único critério seletivo a capacidade de assinar o nome. É preciso mudar. Temos demandas do Século XXI e um modelo de escolha de administradores das savanas.