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Bahia

Cordeiros vivem riscos para 'extra' no carnaval

21 de Fevereiro de 2015 | 09h 31

Natureza da função é questionada como símbolo de exclusão racial e social.

Cordeiros vivem riscos para 'extra' no carnaval
Cordeiros no Carnaval de Salvador 2015

Com a função de segurar cordas de blocos de trios elétricos e separar o folião pagante da tradicional “pipoca” - aqueles que curtem de graça -, pelo menos 50 mil pessoas, pobres em geral, são empregadas de forma temporária para seis dias de carnaval em Salvador, ao custo atual de R$ 40 a diária. Os “cordeiros”, como foram apelidados, são jovens, adultos e idosos, homens ou mulheres, recrutados em regiões populosas como o subúrbio ferroviário – área periférica que abriga 22 bairros, dentre eles Periperi -, e em outras como Cajazeiras, Cabula, Tancredo Neves, Engomadeira ou Mussurunga.

Desde quando conhecida, na década de 1960, a atividade é vista como precária. “Ninguém vai se sujeitar a segurar corda para ver Ivete ou Bell. Eles vão para ter o dinheiro de cada dia. Mesmo assim, são vistos com preconceito e como marginais. É preciso mudar o olhar que se tem sobre os cordeiros”, defende o presidente do SindCorda, Matias Santos. Mais de 50 anos depois, especialistas ouvidos pela reportagem do G1 defendem a posição de que o trabalho é espelho da repressão social e racial. Por outro lado, empresários do entretenimento da Bahia, dentre eles representantes dos donos de blocos, enxergam neles fatia relevante de geração de emprego e inclusão no carnaval. “Em um bloco, há uma média de 700, 800 cordeiros. É muito emprego. A gente fica feliz. Eles vão para a rua e se divertem”, comenta o presidente da Associação de Blocos de Trios (ABT) e do bloco As Muquiranas, Washington Paganelli.

Prazer e violência
Maria de Lurdes, de 58 anos, descansava amparada na balaustrada perto do Porto da Barra, ponto de partida dos trios no circuito Dodô, quando foi abordada pelo G1. “Eu nunca tive violência contra a minha pessoa. Faço por 'precisão' (sic). Se pudesse, saía dentro do bloco”, contou numa terça-feira de carnaval, seu sexto ano como cordeira. Hoje sem ocupação, relata que já foi empregada doméstica, auxiliar de serviços gerais e dá o número de telefone pedindo emprego.

Momentos antes de puxar o terceiro bloco do dia, lá estava Kátia Borges, 49 anos, 15 como cordeira. “Faço porque preciso sustentar meus filhos. Uso o dinheiro para comprar material escolar. É difícil! Tem pessoas que desmaiam de fome, cotovelada a gente leva sempre e os policiais batem na gente. Mas fazemos o possível para não ter violência”, diz a catadora de lixo reciclável. Ao lado dela, também a postos para mais um circuito de 4 km, Ivanildo Cruz, 48 anos e 26 nas cordas do Cheiro de Amor, repete o termo 'precisão' (sic) para justificar o trabalho feito na folia. “Acho que não vale a pena porque é arriscado. Tomamos murro, mas os coordenadores não querem nem saber e mandam botar a corda para frente, para o trio andar. Mas tenho que manter a minha família”, comenta.

A disputa pelo território, tendo como limite de acirramento o contato entre a “parede humana” com policiais e foliões, é apontada como fator gerador de violência. “A topografia do carnaval tem pouco espaço de evacuação e gera tumulto. É um corredor absolutamente apinhado de gente. O cordeiro já é em si mesmo um sujeito socialmente vulnerável e, dentro do carnaval, isso se agrava, porque vai sofrer constantemente agressões psicofísicas, como  verbais, que podem atingir sua personalidade e reverberar na festa ou depois, e físicas, de todos os lados. De objeto de agressão, ele pode se tornar um sujeito de agressão diante da sua condição de anteparo da violência”, explica Guilherme Grillo, mestre em Direito do Trabalho e pesquisador do tema.

Em 2015, nos dois circuitos onde desfilam trios, o Dodô (Barra-Ondina) e o Osmar (Campo Grande), foram 123 blocos com cordas e 162 atrações sem cordas, o que legitima o debate público sobre a mudança do modelo do carnaval. Artistas tradicionais do axé music como Bell Marques e Daniela Mercury baixaram as cordas financiados por patrocinadores e alternando dias à frente dos seus blocos comerciais tradicionais. Por outro lado, nas mais de 70 horas de festa, outros nomes, como o BaianaSystem, e, num fenômeno mais recente, o “príncipe do gueto”, Igor Kannário, arrastaram multidões de públicos próprios livres de cordas.

“É epifânica a imagem das cordas. Eu tenho a impressão que esse modelo está em franco desgaste. As pessoas querem liberdade, diversidade, retomar a potência criativa do carnaval, que esse modelo mega sufoca. Pensar que alguém só pode ir ao carnaval trabalhando em condições precárias é absurdo. É a naturalização de uma estrutura perversa, que até rebate na figura do próprio cordeiro”, afirma Amaranta César, professora, pesquisadora e realizadora de cinema, que documentou a realidade desses trabalhadores por três carnavais, em parceria com Ana Rosa Marques, também professora de cinema e audiovisual, ambas pela UFRB.

Os empresários dos blocos de trios criaram uma estrutura de festa que depende do serviço dos cordeiros. “Eles são de extrema importância, representam a mola mestra no conforto e segurança dos foliões. Evoluímos a cada ano em relação à estabilidade do trabalho. Quem pagou a área, tem a segurança dos cordeiros, que não deixam 10 mil ou 20 mil entrarem. Enquanto tiver bloco, vai ter cordeiro”, avalia Pedro Costa, presidente do Conselho Municipal do Carnaval (ComCar).

Esforço de tutela e o vínculo trabalhista
Todos os anos, desde 2007, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), mediado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), é assinado como um acordo entre trabalhadores e empresários para garantir “condições mínimas” da atividade na tentativa de dar dignidade aos puxadores de cordas. Naquele primeiro ano, o valor pago na diária era R$ 18. Oito anos depois, um dia custa R$ 40 mais R$ 6 de transporte.

“O trabalho deles é essencial para o nosso negócio. Assinamos o TAC valorizando a cada ano o nosso entendimento sobre a condição de trabalho. É uma atividade árdua, mas que também é feliz. É uma categoria muito importante e que faz parte do contexto do carnaval. Ele segura a corda para que o bloco ande. Não vejo como discriminação. Os artistas brincam muito com eles, eles são protagonistas. Cada um, na sua cadeia, tem a sua importância e a sua obrigação”, afirma Washington Paganelli, d´As Muquiranas.

Mesmo com o esforço anual, a redatora do primeiro TAC, Virgínia Senna, procuradora regional do Trabalho, afirma que a atividade do cordeiro serve a uma concepção “elitista” de carnaval e classifica a função como “degradante”. “É a atividade de segurar cordas para impedir que o povo possa brincar dentro de um espaço público que é privatizado pelos blocos de carnaval. É uma atividade desgastada e antipática. O cordeiro fica submetido a toda sorte de discriminação, preconceito; do ponto de vista da saúde, fica exposto às intempéries, riscos e violência. A segregação já é por si só a violência”, afirma. O contrato extrajudicial assinado em forma de TAC é a forma encontrada para tornar o trabalho decente. “Antes, não havia nenhuma garantia. Não havia nada, absolutamente nada. Era a maior informalidade possível. Existiam menores, grávidas, idosos. Depois disso, as pessoas começaram a se conscientizar. Os cordeiros e a população, porque foi dada maior visibilidade. Lembro que Margareth Menezes, de cima do trio, alardeou que os cordeiros tinham que ser respeitados”. 

Dentre os mínimos direitos, é proibida contratação de adolescentes, gestantes ou idosos, contrato e carteira de trabalho são assinados, há amparo com seguro contra acidente e pessoal, além de serem distribuídos equipamentos de segurança como luvas, filtro solar fator 15, protetores auriculares, camisa de identificação e alimentação com água e biscoitos. “É uma forma de se ganhar. Para a economia, é importante existir. Eu acho que deveriam repensar um novo modelo de carnaval incluindo os cordeiros e outras categorias que trabalham informalmente, com garantias. É preciso que seja feito um trabalho social”, defende a procuradora.

Mesmo numa relação complexa e de aparente conflito jurídico, o juiz do Trabalho e professor da UFBA, Luciano Martinez, afirma que nunca julgou ou soube de um número expressivo de ações interpostas por cordeiros na Justiça do Trabalho, onde atua desde 1995. Para ele, a atividade, de caráter excludente, se institucionalizou e pode ser considerada relação de emprego. “Tudo revela a existência de uma relação de emprego, embora eles não tragam a fim de que no Judiciário se identifique essa relação, talvez por conta de não serem chamados nos anos seguintes. O contrato é de tempo determinado, de curta duração, mas tem características próprias do contrato de emprego”, afirma.

Do ponto de vista jurídico sociológico, Martinez acredita que o cordeiro mantém a falsa ilusão de que também é folião. “É a manifestação mais clara da exclusão e dos excluídos. São pessoas humildes e quem brinca dentro das cordas paga valores expressivos. Acaba virando uma ilusão estar na condição de cordeiro”, avalia. Mesmo assim, ele não considera ilícito o fato do cordeiro servir como grande porteiro, isolando os foliões pagantes da “pipoca”, com a responsabilidade de também garantir a segurança, ainda que sem habilidade técnica para isso. “Temos um dispositivo na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] que diz que é possível contratar tudo o que não seja vedado pelo ordenamento jurídico. Aquelas cordas são paredes invisíveis. Foi o único jeito que inventaram de fazer que as paredes andassem”, diz.

Cotidiano profissional
Também no TAC está previsto tempo máximo de 96 horas para quitação das diárias. Porém, a demora ou falta de pagamento aos profissionais cordeiros, queixa histórica, ainda persiste. Segundo o SindCorda, é comum o dinheiro não chegar na mão do trabalhador ou que o valor mínimo acertado no documento não seja seguido, especialmente pelos blocos “nanicos”. Contudo, o foco de atuação do sindicato, hoje, é reconstruir a imagem do cordeiro, explica o presidente.

“O poder público faz o planejamento do carnaval, mas não faz do trabalhador cordeiro. Muitas vezes eles são espancados pela PM e pelos pipocas porque não têm incentivo. Só o TAC não é suficiente. Existem 276 blocos desfilando e somente 12 sentam com sindicato para discutir o tratamento. Isso inviabiliza. Queremos o reconhecimento da categoria.  Queremos chamar os blocos para a responsabilidade de promover o curso de capacitação”, afirma.

Marcelo Cerqueira conta que foi cordeiro e agenciador por cinco carnavais e, este ano, diz ter recusado o convite de três blocos. Como agenciador, precisava arregimentar pelo menos 200 cordeiros para as agremiações e, nessa busca, rodava bairros como Narandiba, São Gonçalo, São Rafael. 

“Eles se aventuram até para ter dinheiro para comprar pão. Todo mundo que eu conheço desistiu. É muita consumição, tem bloco que fica 'matracando' para pagar. Eu ganhava R$ 1 ou R$ 2 por pessoa. Da diária dela. No fim, chegava a um salário mínimo ou a um salário mínimo e meio”, lembrou ele, que é formado em contabilidade e finaliza um curso técnico no Instituto Federal da Bahia (IFBA).

A dinâmica de recrutamento se dá por diversas cadeias. Conforme o sindicato, geralmente o bloco contrata uma empresa de segurança, que recruta coordenadores em bairros e esses selecionam fiscais de cordeiros. "O coordenador tem de 300 a 500 cordeiros. Dessa corda de caranguejo, todo mundo quer tirar uma fatia do bolo. Quando o dinheiro chega na mão do cordeiro, às vezes sobra R$ 36, R$ 38. O coordenador ganha por cabeça, mas não acha pouco e alguns ainda tiram R$ 1 do cordeiro. O fiscal, por sua vez, tira seu R$ 1 também", retrata o presidente do sindicato, Matias Santos. Segundo ele, o nome correto do profissional é "trabalhador de evento popular carnavalesco do Estado da Bahia”. “Cordeiro é nome fantasia”, justifica, na tentativa de reforçar a legitimidade da profissão.

Cordeiros puxando cordas no carnaval de Salvador (Foto: Tatiana Dourado/G1)

 

A fantasia e a opressão
A antropóloga Goli Guerreiro, autora da “Trama dos Tambores”, livro que dedica um capítulo à simbologia dos cordeiros, defende que eles são justificáveis apenas nos blocos afro. Para ela, o uso pelos blocos de trio é reflexo de uma sociedade baiana racista e da exploração do espaço público para uso privado. “Nos blocos afro, há enredo, eles recontam a história dos continentes africanos do ponto de vista dos negros. Um bloco afro na rua tem uma evolução que merece ser resguardada com corda, para que o espetáculo seja preservado. Em blocos de trio, a simbologia muda e o caráter de segregação é visibilizada pela competição étnica dos cordeiros e dos brincantes. Essa imagem que os blocos de trios representa é negativa - foliões sendo protegidos por pessoas que trabalham por salários baixos, em difíceis condições e que têm naquela atividade a possibilidade de fazer dinheiro extra. Não há nenhum benefício social ao trabalhador e é o reflexo da faceta cruel”.

Amaranta César aponta que, no contexto entre 2004 e 2007, quando o documentário foi gravado, os cordeiros eram figuras invisíveis no carnaval, porém muitos deles críticos ao efeito do próprio estereótipo. “Era muito chocante a imagem da corda, muito metafórica, contrastando com todo discurso de festa democrática do carnaval. A situação permanece a mesma - a força de trabalho mal remunerada e precária para favorecer a privatização do espaço público e do modelo excludente de festa que deveria ser diversa. Alguns cordeiros nos falavam que estavam submetidos à violência policial estando na pipoca e que ser cordeiro era a forma de se proteger. Outro argumento era o da viabilidade financeira, o que é perverso. É preciso viabilizar outras formas dos pobres estarem no carnaval. A segregação não pode ser justificativa para a condição de cordeiro”, argumenta.

Marcus Vinícius, 21 anos, encarou a função pela primeira vez, achou a experiência “péssima” e não pretende repetir: “Deus me livre! Na verdade, é para a pessoa se divertir, né? Mas não teve diversão”, avalia. Na controvérsia, a também estreante, Taiane de Jesus, 25 anos e com segundo grau completo, viu na opção a oportunidade de ganhar dinheiro extra. “Estava aqui e me chamaram. Vou curtir o carnaval. Não acho violento porque curto mais do que trabalho”, diz. A amiga, Ana dos Santos, 32 anos, acha que é “muito trabalho para pouco dinheiro”.

FONTE: G1 BA



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