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André Pomponet

O vizinho da boca de crack

André Pomponet - 30 de Junho de 2022 | 12h 15
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O vizinho da boca de crack

-Vejo eles pra lá e pra cá, à noite, até de madrugada. Sabe aquele clipe de Michel Jackson, com os fantasmas? Parece aquilo...

Os olhos muito vivos, a boca aperta de espanto. O comentário é de um cidadão pacato – comerciante, pai, casado, católico, até conservador, quase avô, respeitador das leis – aterrado com os usuários de drogas que costuma ver nas cercanias de onde mora. O clipe que ele menciona é Thriller, sucesso estrondoso há cerca de 40 anos. Nele, zumbis emergem, contracenam com Michael Jackson, astro pop daqueles tempos.

O ir-e-vir dos viciados o estupefata. “Nunca pensei que seres humanos pudessem ser reduzidos àquilo”, confessa, o espanto crescente. Vê tudo à distância. Os espectros, assustadores, emergindo sob a luz opaca do poente, o movimento incessante numa esquina próxima quando as sombras da noite devoram o entardecer, o movimento suspeito e agitado dos traficantes.

Costumava ver as cenas pela tevê, em São Paulo, no Rio de Janeiro, naqueles programas vespertinos, sensacionalistas. De perto, porém, tudo é mais dramático. Não se trata de uma cracolândia enorme, como aquela que existiu no centro de São Paulo e que foi diluída recentemente. É bem mais modesta, explica, mas, mesmo assim, é aterradora.

-Há mulheres também. Vejo à distância, da janela. Na 'noia' – chamam o usuário de crack sob o efeito da droga assim, corruptela de paranoia – ficam agressivos, discutem, ameaçam, caminham sem parar, sem destino, até o efeito da droga passar...

Já flagrou, de longe, a luminosidade fugaz dos cachimbos com a droga sendo acendidos. Os consumidores são andrajosos, esquálidos, desengonçados. Não sabe como arranjam dinheiro para sustentar o vício. Desconfia que seja coletando recicláveis: latas, papelão, metal, plástico, tudo que pode se converter em alguns trocados. Depois, afoitos, correm para a “boca de fumo”, adquirem a droga impiedosa que vai lhes proporcionar um prazer efêmero, mas escravizante.

A experiência o conscientizou sobre aquela catástrofe: mais que um problema de segurança, aquilo é questão de saúde pública, os infelizes que perambulam pelas esquinas próximas necessitam de internação, de tratamento, defende. “Imagino que, às vezes, ajam com violência, isso é óbvio. Mas são muito mais vítimas que culpados”, pondera.

Observo que o raciocínio é excêntrico nesses ásperos tempos: para essa gente infeliz, histéricos defendem cárceres imundos, fuzilamentos sumários, valas em cemitérios; para quem mercadeja fé, orquestra altos esquemas para agadanhar recursos da Educação e da Saúde, sonega impostos, há aplausos, no máximo um silêncio cúmplice, nenhuma repreensão. Prevalece o silêncio por alguns instantes. Por fim, sua latenta convicção cristã o move, num lamento:

-É necessário fazer alguma coisa por essas pessoas. Não me conformo de ver essa cena todo dia, na esquina próxima...



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