Tenho alguns vícios confessáveis. Ler e comer. Um, para alimentar o espírito, o outro, para saciar os instintos. Não necessariamente nessa ordem de preferência ou intenções. Afinal, ainda que haja a navalha do peso, ameaças apocalípticas do colesterol e da medicina, comer continua a ser ritual de importância quase divina. Não me refiro à comida da sobrevivência, mas à supérflua. Aquela, ingerida para satisfazer as células bestiais que anseiam o requinte de uma especiaria indiana, a festa dos sentidos causada por um creme de maracujá, servida em um prato largo, com calda quente e canela nas bordas, a excitação diante de ostras gratinadas, ou de um Tiramissu.
Até mesmo a simplicidade de uma salada de melancia com creme de leite, do tomate batizado por manjericão, um peixe fresco assado na telha, na praia, ou o doce de tomate de minha mãe. Fraquejo, ainda, diante das tentações da carne- e mente quem diz que a carne é fraca- e os molhos que adornam as massas com sabores de todas as latitudes. Como não faço restrições, nada a declarar contra o baião de dois, o mangalô, a farofa de banana, o meninico de carneiro, ou a maniçoba de um domingão qualquer. Mas é que falamos aqui de outro clima, contexto e apetite.
Comer é arte que vai além do mastigar automático dos maxilares. E, quem assistiu Festa de Babette, sabe a magia de um banquete especial. Comer exige abnegação, entrega, sensibilidade. Desprendimento. Deve-se comer, buscando tudo, menos saciar a fome. Quem come para matar a fome não tem tempo para decifrar as nuances de um tempero, de uma erva escondida por trás de muitos outros sabores, nem traduzir a alquimia das combinações. E Shakespeare já dizia, ou devia ter dito: “ Deus, está nos detalhes” É preciso, portanto, comer como quem ora, estando certo que comer começa muito antes do primeiro garfo adentrar o espaço sagrado de sua boca. Comer envolve a iluminação local, a música, o tom do atendimento- não excessivamente íntimo, não irritantemente impessoal-, a decoração que ameniza os olhos, a temperatura ambiente, por vezes desconfortável, e o delicadíssimo cuidado com a limpeza e os toilletes.
A bebida deve ser um enlace que aguça e atiça os instintos para o ritual da alimentação, sempre, se possível, com a companhia desejada. Embora estejamos longe do tempo em que se conquistava um homem pelo estômago, havendo fartura de argumentos mais prazerosos e tentadores, um jantar perfeito pode ser a passagem secreta para uma noite inesquecível e a posse definitiva da alma e corpo do amado ou amada. Nada deve destoar, pois os sentidos devem estar todos atendidos, para que você dedique seu humor e percepções exclusivamente à comida. Ah, mas há ainda a comida. Que deve ser satisfatória no trivial- qualidade mínima- e insuperável quando for ousadia.
Um bom restaurante precisa não cometer pecados no deja vu e ser tão sedutor, quando inova, como um decote feminino cortado na medida precisa. Aquele que sugere anatomia de beleza impensável, mas não revela tudo, deixando parte da descoberta a quem lhe toma. As poções não devem deixar a impressão que somos um consumidor lesado, nem o prato deve demorar o tempo de uma gestação. A comida, entretanto, não deve apenas ter conteúdo. É preciso que tenha também beleza. Ainda que não artesanal como na cozinha japonesa- que muito se preocupa com a estética- mas deve ser ornamentada o suficiente para demonstrar engenhosidade e arte, pois não se deve esquecer que o restaurante tem que atender não só ao corpo, mas essencialmente ao espírito. Aliás, a ciência já sabe que a primeira fase da digestão - dita cefálica- começa antes que se coma o alimento. Não é a toa que andamos por aí a dizer que fulano ou fulana, nos deixa com água na boca.
Enfim, os orientais homenageiam seus mortos com comida, mas, eu, ocidental, pecador, me rendo mesmo é a celebração da vida. À mesa.