Durante
a pandemia ouvia muito a programação musical das emissoras de rádio. As noites
eram estranhas. Sobretudo nos primeiros meses do isolamento social, as notícias
alarmantes sobre mortes se avolumando. O rádio ligado, à noite, afastava um
pouco as apreensões, os medos, a própria solidão, pitoresca, que não era
individual, mas coletiva. Foi quando numa noite de domingo – todas as noites
pareciam ser de domingo – tocou “Roda Viva”, de Chico Buarque.
Ouvir
música no rádio é sempre instigante. Do nada, subitamente, toca uma canção que
transporta o ouvinte para uma viagem em direção à própria memória. Essa viagem costuma
se estender pela duração da canção. Depois finda, mas ficam umas
reminiscências, martelando sentimentos quase adormecidos.
Quando
“Roda Viva” começou, o cenário parecia aguardá-la. O armário com os livros,
melancólicos, à vista dos olhos, a luz suave que não espantava a escuridão, o
profundo silêncio na rua, o céu vazio de estrelas, a expectativa e a tensão,
subjetivas sempre. O “Lá-iá/Lá-iá/Lá/iá...” masculino do MPB4, sonoro, grave,
preparou a imersão naquele clima.
Depois
veio a voz de Chico, profunda, anunciando o contexto da canção, embora não o
mencionasse. “Roda Viva” era música composta para uma peça do próprio
compositor, gestadas naqueles anos iniciais da ditadura militar. A gravidade, a
desesperança, o medo, tudo permeia a canção para quem ouve, considerando seu
contexto.
Décadas
depois, ouvindo-a inesperadamente no trágico período da pandemia, um turbilhão
de sentimentos veio à tona. Sobretudo no trecho da letra que revela a pequenez
dos nossos planos em momentos como aquele: “A gente quer ter voz ativa/No nosso
destino mandar/Mas eis que chega a roda-viva/E carrega o destino pra lá”. Que
controle do destino havia naquele momento da pandemia? Mais ainda: e mesmo sem
ela? Quem controla o destino?
Havia,
ainda, o horror da extrema-direita no poder, o ostensivo desprezo pela vida. Os
anos passaram e a pandemia findou. A própria extrema-direita deixou o poder.
Mas parte do horror permanece aí e serão necessárias décadas para mitigá-lo,
reverter parte dos seus efeitos.
Em
relação à questão ambiental, porém, o tempo urge. Nas últimas semanas as
queimadas mostram que o instinto de destruição permanece ativo, talvez com
ainda mais apetite. Sem dúvida, o tempo das certezas – dos arrumadinhos
projetos individuais – passou. As incertezas – sobretudo as climáticas – são a
regra agora.
Setembro
começa, logo mais é primavera e – reconheço – essas divagações são sombrias.
Então, que permaneça a esperança que a canção de Beto Guedes, “Sol de
Primavera”, exprime tão bem: “Quando entrar setembro/E a boa nova andar nos
campos”...