Foi numa noite chuvosa no começo
da segunda quinzena de abril. A tempestade tinha caÃdo rija, mas cedera, numa
trégua curta. O céu era um teto baixo de nuvens sanguÃneas. Cauteloso, o
motorista avançou em meio à correnteza e o passageiro desembarcou. Depois, ele manobrou
o automóvel branco e encostou por alguns instantes: aguardava, examinando a
tela luminosa do celular, nova solicitação de corrida pelo aplicativo.
Passaram-se alguns instantes. Motoristas
aproveitavam o estio breve para enfrentar a correnteza, com seus faróis ferindo
a escuridão úmida. Mas, depois, a rua ficou deserta e escura de novo. Então ele
desceu do carro e, aproveitando a penumbra e um providencial canteiro de
hibiscos, urinou longamente, feliz com aquele sanitário improvisado. Por fim, voltou
ao carro, ao aplicativo e saiu para atender mais um chamado.
Acompanhei a cena do alto, da
janela. E lembrei, imediatamente, de um filme lançado ano passado: "Você não
estava aqui", do cineasta inglês Ken Loach. Nele, a personagem aventura-se no
ramo de entregas por aplicativo para tentar resolver suas agruras financeiras,
agravadas a partir da crise de 2008.
O que é que provocou a lembrança?
A cena em que a personagem recebe uma garrafa plástica e a recomendação de um
colega para urinar nela nos intervalos de suas incessantes viagens. Não há
tempo - nem onde - atender à necessidade fisiológica elementar. O motorista
feirense, coitado, deveria aprender a técnica e adotá-la em sua rotina para
ganhar tempo. Para ele, banheiro no trabalho é luxo.
Em São Paulo, já vi motorista de
aplicativo comendo ao volante. Num cinzento final de tarde, no extenso
engarrafamento de uma via que conduzia à Marginal Pinheiros, ele arriscava
garfadas enquanto mantinha a atenção no trânsito. Outros, no Itaim Bibi,
devoravam marmitas sob as árvores acanhadas de uma praça. Também era final de
tarde e minha curiosidade provocou olhares hostis. Em volta, os suntuosos prédios
envidraçados que abrigam os escritórios dos bancos, dos fundos de investimento
que movimentam bilhões.
O motorista de aplicativo e o
entregador de motocicleta são a face mais visÃvel do trabalho, hoje, no Brasil. E
de um trabalho precário, com jornadas intermináveis, riscos imensos e praticamente
nenhum direito. A fauna é variada: jovens imberbes, sem perspectivas; gente
mais velha, expelida das atividades formais, que não se recoloca; ou aqueles
que enfrentam dupla jornada para aumentar os ganhos exÃguos.
É duro ver uma geração de
brasileiros, por falta de alternativas, dedicar-se a estas tarefas que não
prometem futuro nenhum. Mas, mesmo assim, ainda há quem cultive a ilusão de
que, caso se esforcem, poderão prosperar, tornar-se ricos como seus patrões sem
rosto. Triste ilusão essa, a da "meritocracia", do esforço individual.
Mas, apesar de tudo, é noite
de sábado do Dia do Trabalho. É bom saudar quem trabalha pelo seu dia!