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César Oliveira - Crônicas

Faça o dia bem feito

César Oliveira - 10 de Fevereiro de 2021 | 15h 58
Faça o dia bem feito
Acho a vida tão breve, que não podemos deixá-la só ao improviso. Quando chegamos ao ponto em que temos apurado o senso estético, amoroso, cultural, eno-gastronômico, começamos o inevitável declínio. É nesse breve intervalo entre a aquisição de uma razoável estabilidade econômica e comportamental e o início das limitações fisiológicas que precisamos concentrar o máximo de esmero em viver.
 
A partir de certo tempo de vida, devemos utilizá-la não como uma debênture de retorno infinito, como na juventude, mas como um investimento limitado e que por isso mesmo precisa ser selecionado, qualificado; usado de modo objetivo, preciso, para evitar desperdícios ou a insignificância. Viver é impreciso, ao contrário de navegar, mas precisamos ir como quem navega, no rumo exato, ainda que possamos flertar- para evitar o enrigecimento- com a beleza do incerto.
 
Esse é um tempo em que não devemos fazer mais concessões ao que não nos representa- especialmente ao poder, qualquer poder- nem rebaixarmos o sarrafo que corta nossa aprovação, nem deixarmos passar em nosso escrutínio, o falso, o efêmero, a injúria, a indiferença, o descaso, a servidão mental, ou emocional, ou nada daquilo que não seja absolutamente do bem. E digno.
 
Os dias precisam ser vividos com cuidados de artesão, a ambição de grandiosidade humana dos poetas, a engenharia milagrosa das sondas atiradas na Via-Láctea, e a simplicidade de um fogo feito de gravetos.
 
Por isso devemos tentar fazer todos os dias terminarem com a fé de uma ave-maria; o som de uma música vindo de longe, ao pôr do sol, perto do rio que caminha seu destino; uma página de um bom livro, guardado na memória; com a regeneradora paz dos que dormem- só eles- o sono dos justos.
 
Ou como um passeio de bicicleta na estradinha de terra; a alegria de uma criança-desavisada do mundo- que brinca de amarelinha com seu vestido de flor; com a contemplação de alguém que rega um jardim, sem função, exceto ser um jardim que resiste a ter sentido útil. Um jardim nada mais deve ser do que uma recusa em não viver.
 
Um dia jamais deveria terminar sem que telefonássemos para um amigo, como se fosse um registro no cartório divino atestando nossa humanidade. Afinal, galos sozinhos não tecem a manhã.
 
Assim deveriam terminar todos os dias. Com uma lembrança boa de alguém que foi, ou é, importante. Não que não haja máculas – a vida não se concede sem elas- mas, é que nesse tempo, não há tempo para elas, por uma questão de sanidade e redução de danos.
 
Os dias deveriam terminar com o dobrar dos sinos, e sem precisarmos perguntar por quem eles dobram. Por isso, é preciso, todos os dias, ao terminar o dia, exclamar: eu fiz o dia bem feito.
 
 


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