Tribuna Feirense

  • Facebook
  • Twiiter
  • 55 75 99801 5659
  • Feira de Santana, quinta, 28 de maro de 2024

Cultura

Painel de Lênio Braga agoniza na Rodoviária de Feira: letargia, descaso ou omissão?

Ísis Moraes - 13 de Fevereiro de 2019 | 08h 34
Painel de Lênio Braga agoniza na Rodoviária de Feira: letargia, descaso ou omissão?
Foto: Ísis Moraes

“O que a memória ama/ fica eterno.”

(Adélia Prado)

 

Parece repetitivo falar sobre a destruição do patrimônio artístico, cultural e arquitetônico de Feira Santana, mas, para as retinas de quem viu um pouco do que já foi essa cidade, é doloroso constatar que quase nada resta. Mais do que isso: perceber que o que resta continua em permanente estado de esquecimento é desolador. Aqui, o silêncio institucional não apenas se abstém da obrigação de preservar e restaurar, mas ajuda o feirense não afeito ao exercício de se reconhecer no passado a deslembrar sua própria História.

Líquido – como tão bem define Zygmunt Bauman –, dissonante, apressado, vazio de sentido histórico, efêmero, irrealizável para além do instantâneo, nosso cotidiano avança, compulsivamente, para o desmanche de tudo o que é memória. Sob o sol da nossa contemporaneidade nada é absoluto. Tudo que é sólido se esboroa, como Karl Marx e, tempos depois, Marshall Berman apontaram, na tentativa de entender os mecanismos que regem o funcionamento do mundo moderno, já ultrapassado, em velocidade amnésica, pela fluidez da atualidade.

Quem olha Feira de Santana, hoje, e quem convive com a seca realidade que ela impõe, teme que, algum dia, até mesmo a sentença de Adélia Prado deixe de fazer sentido, afinal, a memória morre com a carne dos que a guardam. O que nos é exterior é perecível. E, como o esqueleto memorial da cidade foi posto quase todo abaixo – grande parte antes de ser, materialmente, registrada –, Feira de Santana não poderá sequer doer, como Itabira, porque, no ritmo em que sua História se esfacela, nem ao menos chegará a ser um retrato na parede.

A longa introdução não tem o intuito de ferir os brios governamentais de ninguém. Importa dizer, porque, no Brasil, erroneamente, a política é, além de passional e rancorosa, incapaz de exercer a mínima autocrítica, vaidosa demais para reconhecer a própria indolência e egoísta o suficiente para desgrudar os olhos do próprio umbigo e se ater ao que realmente importa. Não digo isso por qualquer resquício de receio, coisa que desconheço, mas porque entendo que o papel da imprensa é fazer chegar até a, também equivocada, inacessibilidade institucional o que a sociedade precisa criticar e cobrar. E isso não é rivalidade, é cooperação.

Nos países mais desenvolvidos, a administração pública ouve e trabalha em conjunto com a sociedade e enxerga mais do que os próprios cofres. É por isso que monumentos erguidos há milênios estão de pé, firmes, preservados e seguem encantando a humanidade, seja na Grécia, seja na Itália, na França, na Espanha, em Portugal, na Inglaterra ou na Turquia. A História importa, define quem eles são e os fez entender o seu tamanho. E foi justamente essa noção que pôs freio às muitas tentativas de destruição, por parte do tempo, dos oponentes e do mercado, fazendo-os ativar os mecanismos de salvaguarda.

Contrariamente, no Brasil, museus ainda pegam fogo, por falta de manutenção; monumentos agonizam; obras de arte são devoradas pelo tempo; casarões antigos cedem à cegueira pública e satisfazem a voracidade imobiliária, que, em Feira de Santana, por exemplo, cultua lucrativos galpões e estacionamentos. Por isso, esse texto é, antes, mais um dos muitos apelos que esse suplemento cultural vem fazendo há anos, sem qualquer apoio financeiro: cuidem do que seremos no futuro, porque a essência dessa cidade está sob o risco iminente de desaparecer.

O que aqui e hoje se arvora em movimento de defesa tem endereço: o Terminal Rodoviário de Feira de Santana. É lá que, lentamente, dia após dia, pedaço a pedaço, a única ampla representação da cultura nordestina, sertaneja, feirense se desprende das paredes para cair no esquecimento.

LÊNIO BRAGA – Inaugurado em 1967, o painel de azulejos da estação rodoviária local tem assinatura do artista plástico paranaense Lênio Braga e foi realizado a partir de um convite do Governo do Estado, em reconhecimento não apenas à importância que o pintor, desenhista, escultor, muralista, gravador, fotógrafo e artista gráfico alcançou, nos cenários nacional e internacional, mas também a tudo o que ele realizou pela cultura baiana, durante os anos em que aqui viveu.

De grande porte, o projeto também incluiu a realização de outros dois painéis, nos terminais de Itabuna e Jequié. Para conceber estas obras, Lênio utilizou pastilhas de cerâmica coloridas na composição de mosaicos que retratam não só os diversos meios de transportes terrestres e os destinos de viagens a outras cidades e estados, mas também os traços culturais de cada localidade.

Já o mural de Feira de Santana, maior dos três painéis, contou com a colaboração do ceramista alemão Horst Udo Erich Knoff, que viveu no Brasil de 1938 até o ano de sua morte, em 1994. Estabelecido em Salvador, onde possuía um famoso ateliê de cerâmica, no bairro de Brotas, Udo Knoff, que também foi professor da Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), produziu cada azulejo encomendado por Lênio de forma artesanal, sob medida, fator que agrega ainda mais valor artístico ao trabalho.

Lênio Braga realizou uma minuciosa pesquisa sobre a cultura de cada uma das cidades contempladas pelo projeto, para só então começar a montar os mosaicos e a pintar, individual e manualmente, cada um dos azulejos confeccionados por Udo. Assim nasceram as cenas que formam o mural de Itabuna, no qual o artista também retrata a cultura do cacau, àquela época já imortalizada nos romances de Jorge Amado; e as passagens e personagens que dão vida ao painel de Jequié, onde Lênio buscou evidenciar, também, a cultura do gado, predominante naquela localidade. Esta característica, aliás, é igualmente peculiar a Feira de Santana e está presente no painel daqui, embora ele abranja uma infinidade de outros temas.

Para criar o mural feirense, Lênio se debruçou não apenas sobre o ciclo do couro, o folclore, os costumes, as artes, as tradições populares, as origens e as atividades comerciais e produtivas locais, mas sobre todo o arcabouço cultural nordestino e sertanejo. E por um único motivo: Feira de Santana, enquanto mais importante entroncamento rodoviário do Norte e Nordeste, é um microcosmo. Por aqui, todos passam, muitos ficam, todas as gentes se encontram e todas as culturas se fundem.

IDENTIDADE CULTURAL – O painel da Rodoviária de Feira de Santana é composto por um conjunto de sete blocos, tendo o principal 18 metros de comprimento. Nele, o artista não apenas narra toda a vida cotidiana da cidade, mas também dá corpo às lendas, superstições e figuras mitológicas; ao imaginário popular sertanejo; à religiosidade nordestina; aos folguedos e ao universo lúdico infantil; à literatura de cordel; e às figuras reais que deixaram marcas profundas na nossa História, como Maria Quitéria, Lampião, Padre Cícero, o escravo rebelado Lucas da Feira e o pintor Raimundo de Oliveira, um dos nossos mais renomados artistas, que se suicidou, em 1966. A homenagem de Lênio ao amigo é uma das passagens mais marcantes do painel, por cristalizar a comoção de seu torrão natal diante da perda do filho ilustre e querido.

De acordo com Cledson Ponce, professor de História da Arte da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), é exatamente nessa peculiaridade que reside a importância do monumento instalado no nosso Terminal Rodoviário. “Esse painel é uma das maiores joias que Feira de Santana tem. É uma obra riquíssima, repleta de figuras folclóricas, como o Saci Pererê e a Mula-sem-cabeça; de personagens literárias, como Iracema, criada pelo romancista José de Alencar; de figuras características da vida sertaneja e nordestina, como o tropeiro e o vaqueiro. Nele, a origem da cidade, lá pelos idos de 1700, se delineia. E os ícones representativos da grande feira livre surgem para aclamar esse que ainda é um dos maiores referenciais da nossa cultura”, observa.

Para o docente, que, em 2002, defendeu, também na Uefs, a Dissertação de Mestrado O cordel iconográfico de Lênio Braga, único trabalho acadêmico realizado, até então, sobre o monumento, o painel é uma grande narrativa sobre todos os signos que fazem de nós, nordestinos, sertanejos, feirenses, únicos no mundo. É a representação mais palpável e autêntica da nossa Identidade Cultural.

“O conjunto de painéis narra o transcorrer do dia nas ruas centrais da cidade, onde a extinta feira livre acontecia. Nas laterais, estão os blocos que correspondem, respectivamente, ao espaço temporal que vai do nascer do dia ao pôr do sol. Aí estão os tropeiros, conduzindo as boiadas para serem comercializadas na antiga feira de gado; e o auge da feira livre, com seus tipos emblemáticos: o vendedor de loteria, os repentistas, o cego violeiro, o lambe-lambe, os tabaréus e os feirantes, vendedores de todo tipo de iguarias, frutas, verduras, bebidas, ervas, objetos e animais. Na parte final, novamente ressurgem os tropeiros, agora sob a luz poente, levando embora suas tropas de burros”, descreve.

Na parte central, conforme Cledson Ponce, estão os personagens históricos, mitológicos e literários. Ele explica que, além das muitas lendas, frases de para-choque de caminhão, poemas, ditos e crenças populares, orações e signos religiosos, Lênio reproduz, fielmente, 14 capas dos mais famosos cordéis da nossa cultura, dentre eles O testamento da Cigana Esmeralda; Boi Mandingueiro; A chegada de Lampião no inferno; e A história das 3 princesas.

“Tive que ler cada um dos livretos e, para isso, contei com a valiosa ajuda do cordelista Franklin Maxado, que também é apaixonado pelo painel. Ele me emprestou todos os cordéis, para que eu pudesse seguir com a minha pesquisa e compreender o sentido de cada um deles na iconografia de Lênio, um artista completo, que dominava todas as técnicas artísticas, atento aos nossos valores culturais e muito engajado nas questões políticas e sociais de seu tempo”, lembra.

BICHO DE FEIRA DE SANTANA – A referência à atuação política de Lênio Braga não é gratuita. Na época em que o painel foi concebido, o Brasil ainda estava sob o domínio da Ditadura Militar, deflagrada três anos antes da construção do Terminal Rodoviário de Feira de Santana, no dia 31 de março de 1964. Declaradamente comunista, o artista colaborava com a resistência estudantil, imprimindo panfletos de protesto. Por causa disso, teve a gráfica invadida e devastada pelos militares e precisou fugir para o interior da Bahia, a fim de não ser preso, torturado e, possivelmente, morto.

Refugiado em Itapetinga, entre 1964 e 1967, o artista concluiu, para a Capela do Menino Jesus, seu mais importante conjunto de esculturas em pedra, metal e madeira, enriquecendo a obra arquitetônica com peças artísticas e decorativas. Nessa espécie de exílio, Lênio também seguiu trabalhando nos painéis. E a violenta repressão do Regime Militar acabou ganhando forma no mural feirense.

Apropriando-se de uma das muitas lendas urbanas da cidade, o artista associou a figura real do Capelão, enviado a Feira, pelos militares, para caçar os comunistas e eliminar todo e qualquer foco de subversão, ao lendário Bicho da Feira, também conhecido como Bicho do Tomba, entidade mitológica que, segundo os antigos, “assombrava” os moradores em períodos de crise.

Claramente inspirados pelo painel de Lênio, os romancistas Fernando Ramos (O lobisomem de Feira de Santana) e Muniz Sodré (O bicho que chegou a Feira), tempos depois, também associam, nas suas narrativas, o animal fabuloso a dois períodos conturbados da História do Brasil, respectivamente: a década de 1940, época em que Getúlio Vargas instaurou o Estado Novo; e a década de 1960, momento da tomada de poder pelos militares.

Cledson Ponce diz não ter dúvidas sobre a intenção de Lênio, que faleceu, em 1973, aos 42 anos, em decorrência de uma apendicite. Para ele, a representação do Bicho da Feira, no painel, é uma alegoria da Ditadura Militar e uma crítica a toda e qualquer forma de poder arbitrário. Segundo o pesquisador, essa teoria também foi confirmada pelo artista plástico Juarez Paraíso, amigo próximo do artista, na ocasião em que o procurou para obter informações para o seu projeto de Mestrado. Então, foi a partir dessa engenhosa ideia que Lênio Braga criou a cena mais instigante e monumental do mural feirense.

ESTADO DE CONSERVAÇÃO – Uma vez traçada a dimensão do painel, esbarramos na mais dura das constatações: desde a sua instalação, há 52 anos, essa parte importantíssima do nosso patrimônio artístico e cultural nunca foi restaurada.

A situação é caótica: azulejos faltando; portas abertas no meio do mural, o que ocasionou a destruição de alguns desenhos e inscrições; grades fixadas em cima da obra; pontos comerciais instalados na frente do painel, impedindo a visão dos transeuntes. Se muito, uma das ilhas fixadas no local está a pouco mais de um metro do quadro em que Lênio retrata a aparição do Bicho, o que me obrigou a ter de pedir autorização para entrar no estabelecimento, com a finalidade de conseguir fazer uma foto frontal da cena, algo impossível para quem tenta pelo lado de fora.

Nem é necessário citar todos os problemas, para perceber o tamanho do desrespeito a um bem cultural que, na qualidade de obra de arte, é um patrimônio da humanidade. O professor Cledson Ponce, admirador do painel desde criança, disse que lamenta, profundamente, o estado em que o mural se encontra. Ele espera que as autoridades competentes se encarreguem não apenas de preservá-lo e livrá-lo dos obstáculos, mas também de restaurar as partes que estão danificadas.

“Estamos falando de um patrimônio importantíssimo não só para Feira de Santana, mas para todos que por aqui passam. É muito doloroso, para mim, ver aquele painel mal cuidado, desaparecendo aos poucos, sendo quebrado e escondido dia após dia. Em qualquer outro lugar do mundo, esse monumento seria uma referência cultural e estaria intacto e protegido. O Brasil precisa desenvolver a cultura da preservação. É salutar salvaguardar a nossa memória”, enfatiza, criticando ainda a atuação da Sociedade Nacional de Apoio Rodoviário e Turístico (Sinart), administradora do Terminal Rodoviário, no que diz respeito à manutenção da obra.

TOMBAMENTO – Tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) desde 2001, o painel de Lênio Braga, durante todo esse tempo, foi alvo de poucas vistorias e nenhuma ação concreta, por parte do órgão. Há quase um ano, nossa editoria tenta, em vão, obter respostas. O último contato foi no dia 22 de novembro de 2018, via Assessoria de Comunicação da instituição. Uma vez mais, os questionamentos encaminhados foram ignorados.

O silêncio institucional frente à destruição de todo o perfil arquitetônico da cidade e ao estado de abandono em que nosso patrimônio artístico se encontra parece ser o indicativo de que Feira de Santana foi completamente banida da cena cultural. E, dentro de pouco tempo, as sequelas da inércia, da omissão e do descaso administrativos serão irreversíveis.

 

* Matéria originalmente publicada na edição impressa do Tribuna Cultural, suplemento do jornal Tribuna Feirense, em 31 de janeiro de 2019.



Cultura LEIA TAMBÉM

Charge da Semana

charge do Borega

As mais lidas hoje