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André Pomponet

Os trabalhadores da Salvador aristocrática

André Pomponet - 19 de Março de 2018 | 08h 55
Os trabalhadores da Salvador aristocrática

Eles começam a chegar aos antigos e aristocráticos bairros de Salvador nas primeiras horas da manhã. Invariavelmente desembarcam de ônibus cujos letreiros luminosos sinalizam origens longínquas: Pau da Lima, Mussurunga, Santa Mônica ou Fazenda Grande do Retiro. A afluência, porém, é maior do distante Subúrbio Ferroviário, com suas dezenas de comunidades carentes: Mirantes de Periperi, Paripe, Coutos, Fazenda Coutos, Lobato e os mais próximos: Marechal Rondon, Capelinha de São Caetano e Alto do Cabrito. Boa parte dos veículos traz o amarelo da frota que circula naquela região.

Eles são os trabalhadores que ganham a vida nos bairros nobres de Salvador, labutando nos edifícios elegantes onde reside parte da elite local. São empregadas domésticas – o tipo mais comum naquelas levas que desembarcam a todo momento no início da manhã – faxineiras, copeiras, babás, cuidadoras de idosos: as mulheres predominam naquele universo.

Entre os homens pontuam os porteiros, jardineiros, ascensoristas, eletricistas, montadores de móveis, encanadores, pintores e pedreiros, além de biscateiros que encaram qualquer tarefa em troca de remuneração módica – o popular “agrado” – nesses tempos de feroz retração econômica. Boa parte flutua pela metrópole: prestam serviço aqui ou ali, dependendo da demanda.

A movimentação dessa gente – ali do Campo Grande à Barra, incluindo o Corredor da Vitória e a Graça nesse circuito – começa logo cedo, quando desembarcam dos ônibus suburbanos. E se estende ao longo do dia: fazem compras miúdas nos minimercados, padarias e açougues; acompanham idosos abastados com dificuldade de locomoção; levam e trazem crianças de pele, olhos e cabelos claros; e, sobretudo, passeiam com os cães graciosos que os moradores das cercanias apreciam criar em seus apartamentos espaçosos.

Avulsos

Esses trabalhadores estão disponíveis para atividades contínuas que se renovam no dia-a-dia. Mas existem aqueles que prestam serviços complementares: nas manhãs de sábado jovens negros passam vendendo mariscos pelo Corredor da Vitória: avisando na portaria, reserva-se o camarão, a lagosta, o siri catado para a refeição do final de semana, sem precisar sair de casa.

Os indefectíveis carros do ovo também circulam por ali: além dos 30 ovos ofertados por irrisórios R$ 10, um utilitário surrado também disponibiliza para a clientela farinha e polpa de fruta. A estratégia é a mesma empregada noutras regiões da cidade: o alto-falante que amplifica a voz rascante, a velocidade baixa e a atenção para o aceno dos potenciais consumidores.

Há concorrência: numa radiosa manhã de sábado, uma Kombi estacionou, abarrotada de placas de ovos, atendendo a clientela dos prédios próximos. Os poucos pobres residentes nas cercanias – há cortiços, acanhados, debruçando-se sobre a Baía de Todos os Santos – e as dinâmicas domésticas acercam-se do veículo com familiaridade, proseiam com o jovem vendedor.

Bicicletas

Quem puxa plantão nas portarias costuma sentir fome: não falta, para supri-los, hábeis ambulantes que circulam em bicicletas equipadas com recipientes plásticos acoplados. Neles, acomodam-se banana real, pastel, sonho e coxinha para saciar a fome de gordura dos porteiros e seguranças e das eventuais domésticas que interrompem o passo apressado para fazer um lanche.

Uns fazem piadas, íntimos dos porteiros; ouvem réplicas, apregoam seus produtos e, ágeis, atendem pedidos, recebem o pagamento, passam o troco ou anotam em cadernetas amarrotadas a conta a ser quitada mais adiante. Depois, montam nas bicicletas e seguem lépidos para a portaria seguinte.

Paramentados, vendedores padronizados de sorvetes e picolés vencem com passos largos a distância que separa o centro de Salvador do Porto da Barra. Cortam caminho pelo Corredor da Vitória, ávidos, apostando no irretocável sábado de sol. Imaginam que a clientela sedenta vai se adensando nas areias do mar manso da baía.

Belezas

Em meio às tarefas enfadonhas, há quem espiche o olhar para o fundo dos prédios e consiga sorver o azul contagiante da Baía de Todos os Santos, sobretudo nas manhãs de céu limpo. Ali a altura empresta ao mar uma aparência de parede exótica, que encrespa à medida que o vento agita a flor da água. Uma sensação festiva inunda aquela gente habituada à monotonia do concreto.

À frente, as copas das árvores encobrem o céu no Corredor da Vitória, a rua da Graça, a Princesa Leopoldina. Aqui ou ali o vento desnuda o céu e a luz se insinua, exibindo os átomos que doidejam, anárquicos. Mas essas tréguas, líricas, são curtas: a atenção com o morador, o movimento repetitivo e o peso da mercadoria restabelecem, logo, a conexão com os imperativos da vida material.

Nos finais de tarde a procissão se reverte, em direção às longínquas periferias. Aí há o cansaço, a inquieta espera pela condução, a melancolia dos curtos crepúsculos na paisagem pontuada pelo concreto, o desconforto provocado pela rotina imutável. Muitos sonham, acordados, pelos pontos de ônibus. E espicham o olhar perdido, mergulhados em seus devaneios.



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