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André Pomponet

Ode ao largo Dois de Julho

André Pomponet - 01 de Março de 2018 | 17h 18
Ode ao largo Dois de Julho

Se há um local que espelha o soteropolitano médio, aquele que desempenha funções intermediárias – o comerciário, o assistente administrativo, o barnabé do funcionalismo público, o comerciante modesto, o pacato pai de família, o apreciador da cervejinha e do bate-papo – esse lugar é o largo Dois de Julho, no coração da capital baiana. Mas não só ele: o camelô, o ambulante, o biscateiro, o desempregado e até a malandragem arisca identifica-se com aquelas ruas estreitas que descambam defronte à Baía de Todos os Santos.

O largo Dois de Julho é plural: há, ali, o sujeito com jeitão conservador, prestando serviços com sua pasta de documentos debaixo do braço; há o vendedor de arranjos de flores e de móveis de vime, há o comerciante sisudo, o “flanelinha” com sua ginga, a pacata dona-de-casa com suas compras e os intelectuais e os artistas que, nos finais de semana, povoam os bares das redondezas com suas conversas, gestos e trajeitos.

O ir-e-vir é incessante: há quem acabou de desembarcar do subúrbio para prestar um serviço, comprar alguma coisa, aventurar um biscate; há os idosos – saudosos dos tempos antigos, quando a quietude amansava os espíritos – sentados pelos bancos; circulam os assíduos frequentadores do centro da metrópole, assim como os visitantes esporádicos que vieram da longínqua Itapuã ou da distante Cajazeiras.

Comerciantes cumprimentam fregueses habituais, lançam olhares desconfiados para a malandragem andrajosa, examinam os transeuntes farejando potenciais clientes. Padarias, mercadinhos e armarinhos misturam-se aos letreiros chamativos dos hotéis que insinuam as potenciais aventuras amorosas que espreitam as redondezas.

Dia

Às primeiras horas da manhã o Dois de Julho desperta, sonolento, restabelecendo-se de sua noite e de seus pecados. Gente com compromisso passa apressada, estudantes fazem estardalhaço mas adiantam-se para a escola, os orientais silenciosos vão levantando portas corrediças, exibindo os bibelôs baratos que atravessaram o planeta. Pelo meio da manhã o movimento se intensifica e o cheiro da comida vai se espalhando pelos arredores, capturando os passantes mais distraídos.

Tabuletas variadas exibem cardápio robusto para quem entra vindo ali da rua Carlos Gomes: mocofato, sarapatel, rabada com pirão e agrião, feijoada, cozido com uma infinidade de legumes, além do acarajé e do abará, de aroma inconfundível, que figuram nas preferências de quem vai, antes, saborear uma cervejinha, mesmo nas sisudas manhãs de segunda-feira. Aqui ou ali, o yakisoba dos orientais se insinua, demarcando terreno.

Homens e mulheres – espalhafatosos, ruidosos, alegres, negros em sua maioria – espalham-se por mesas e cadeiras, celebrando as refeições com apetite ostensivo. Há quem, atarefado, belisque o frango grelhado do prato-feito barato e suba, apressado, pelas ruas do Cabeça ou da Forca. Uns aproveitam para a aposta na loteria ou no bicho, mentalizando sua crença com fé solene. Onipresentes, os vendedores de bugigangas contrabandeadas circulam com desenvoltura entre quem almoça.

Antes do meio da tarde a multidão se desarranja: a trégua do almoço se extingue e vão desaparecendo aos magotes, subindo em direção à Piedade, às Mercês ou aos Aflitos, retornando para o São Bento ou para a Praça Castro Alves. Quem circula anseia pelo frescor das sombras, que vão se multiplicando à medida que o sol mergulha por trás do horizonte de concreto cinza, em direção às imaginadas águas azuladas da Baía de Todos os Santos.

Noite

Quando o sol já tinge as fachadas dos prédios de uma cor alaranjada há uma trégua breve. Naquele instante, sobrevoam pombos encardidos e espectros depauperados pelas drogas vociferam, gesticulam, enérgicos, ameaçando as misteriosas sombras que os assustam. Mas passa: depois a fauna se renova, chega gente para os bares, para o aperitivo do fim da tarde, antes do retorno para casa.

Pelos bares, intelectuais destilam teorias com tons discretos, artistas espalhafatosos lapidam ideias que, lá adiante, ganharão expressão, jornalistas avaliam, com tom solene, o grave momento político que o país atravessa e gente do povo celebra a vida, bebendo em largos goles e conversando em altos brados. Veem-se, também, servidores públicos comentando percalços, elaborando estratégias.

À medida que a noite avança o Dois de Julho decai: fecham-se as portas corrediças dos comércios, recolhem-se os moradores dos antigos prédios, embarcam os moradores da periferia e, aos poucos, rendida pelo álcool e embriagada de ideias, a clientela desaparece. Sobram as luzes alaranjadas, melancólicas, da iluminação pública e os letreiros a neon, chamativos, dos hotéis.

Predomina, então, até as primeiras luzes da aurora, a tensão marginal da noite que envereda pelos becos e vãos escuros, escoa pelo silêncio das pedras de calçamento, assusta quem não aventura encontros inesperados, mas ansiados. Depois, quando as primeiras cores começam a tingir o alto do céu, lentamente, o Dois de Julho vai se distensionando, aguardando a chegada de mais uma manhã.



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