No
final da manhã de hoje (16) fui surpreendido pela notícia da morte do cantor
Missinho. Ex-vocalista da banda Chiclete com Banana, o artista – também
instrumentista e compositor – figura na memória musical de quem cresceu na
Bahia ao longo dos anos 1980. Naquela época a banda emplacou sucessivos
sucessos, que, até hoje, sobrevivem no repertório da chamada “axé music”.
Ironicamente,
o início e o fim da trajetória do artista na mais famosa banda da música baiana
aconteceram aqui na Feira de Santana. Pelo que li na imprensa, os irmãos
Marques – proprietários da Chiclete com Banana – viram Missinho tocando guitarra
baiana em um trio, no remoto ano de 1980, aqui na Princesa do Sertão. Convidaram-no
para compor o grupo – que ainda se chamava Scorpions – e começou ali a
relação.
Seis
anos depois – em 1986 – a parceria chegou ao fim. Aqui também, na Feira de
Santana. Um desentendimento, após uma apresentação na Micareta, selou o
rompimento. Naquele momento, Missinho já compusera – e cantara – alguns dos
principais sucessos da banda. A fama se consolidava, mas ele saiu antes do auge.
Nos
anos seguintes ouvi muitas versões sobre o rompimento, de supostas testemunhas
quase oculares. A mais frequente delas dizia que o grupo, após concluir sua
apresentação no circuito da Micareta, recebera a orientação para fazer nova apresentação.
Missinho insurgira-se, abandonando o trio e a banda ali na Getúlio Vargas.
Começaria, na sequência, carreira solo, sem muito sucesso.
-
Vi quando aconteceu. Ele desceu do trio, segurando a mão da namorada. Quase
esbarrou em mim – Foi a versão que ouvi, anos atrás, de um folclórico contador
de causos da Feira de Santana. Ouvi outras versões, sempre relacionadas
ao mesmo episódio. Até hoje não sei até onde vai a verdade.
Não
é exagero apontar que Missinho – junto com Luiz Caldas – foi um dos principais
pioneiros da música baiana, que estertora há tempos. Além de músico talentoso,
Missinho compunha. Suas letras, impregnadas de céus, luas, estrelas, lumes e
favos de mel, reportavam a dimensões que extrapolavam a vida convencional,
limitada, engessada.
Pois
o grande artista baiano faleceu num 16 de maio. Não tive como não recordar de
um trecho de “Táxi Lunar”, de Alceu Valença, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo: “No
dia dezesseis de maio, viajei”. Bem a calhar: viagem, lua e 16 de maio...
Para quem viveu – e curtiu –
o movimento musical que surgiu na Bahia nos anos 1980, a perda de Missinho é
irreparável. Mas ficará, como legado, a sua obra, como ele mesmo previu numa
entrevista...
Confesso
que, sob determinados aspectos, tenho saudades da Era Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002). Obviamente, o terrível legado liberal – ou neoliberal – não deixou
saudade nenhuma. Mas, naquele tempo, o brasileiro médio babava de admiração
pelo então presidente, que falava inglês e francês, dera aulas em prestigiosas
universidades da França e dos Estados Unidos e fora professor da Universidade
de São Paulo.
Essa
admiração sinalizava, até então, que o brasileiro nutria certa admiração pelo
saber, pelo conhecimento. Tudo mudou 20 anos depois, – a reeleição de FHC foi
em 1998 – pois o brasileiro médio jactava-se da própria ignorância e anunciava,
com estardalhaço, que ia votar em alguém bem mais ignorante do que ele: Jair
Bolsonaro, aquilo que muitos veneram como “mito”.
Os
quatro anos posteriores ainda estão vivos na memória de quem sobreviveu.
Ignorantes e analfabetos passaram, desde então, a “equiparar” a própria
ignorância ao conhecimento e aos esforços de doutores e pós-doutores, à
sabedoria de renomados cientistas. O delírio só poderia resultar na catástrofe
do negacionismo e nas 700 mil mortes da pandemia de Covid-19, para não esticar a
conversa e mencionar outros episódios.
Mas,
inconformada, a turba decidiu que precisava de mais. Então, teria direito à
própria realidade. E aos próprios fatos, obviamente. Daí começaram os
virulentos ataques à imprensa e aos jornalistas. Hoje, pretendem equiparar sua delirante
versão da realidade – as “fake news” – à própria realidade. Noves fora os
fatos, vêem tudo como um confronto de “narrativas”.
A
usina de “narrativas” – é melhor “fake news” – escolheu, como bola da vez, o
desastre climático que atingiu o Rio Grande do Sul. Estão pouco se lixando para
os gaúchos vítimas das enchentes, assim como não ligaram a mínima para as
vítimas da Covid-19. Ontem inventaram mentiras para manter o lunático que os
guia no poder; agora, recorrem ao mesmo expediente para desgastar o governo
eleito pela maioria dos brasileiros.
Para
quem fez oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso, não deixa de ser
irônico sentir saudades. Afinal, naquela época prevaleciam um projeto de poder
e uma concepção de sociedade dos quais muitos discordavam. Mas havia – é
inegável – um compromisso com a civilização e com a própria democracia.
Quem peleja nos segmentos
fanático e alucinado da oposição, hoje, tem compromisso só com a morte, a
destruição e a barbárie. As delirantes mentiras sobre a tragédia no Rio Grande
do Sul apenas vem – mais uma vez! – reforçar tudo aquilo que já se sabe...
A
imprensa costuma afirmar que os partidos de esquerda no Brasil não têm política
eficiente de segurança pública. É verdade. A extrema-direita, que até outro dia
estava no poder, também não. Ao contrário: o discurso de armar a população para
a autodefesa serviu, no fundo, para equipar o crime organizado. Nunca o
banditismo esteve tão bem armado. As milícias, – a variante do banditismo
entrincheirada no Estado – por sua vez, puderam renovar seus arsenais, ampliar
seu poder.
Vulnerável
pelas ruas, a população enxerga o crime apenas nos ladrões de celular, nos
traficantes miúdos pelas esquinas, nos descuidistas, nos assassinos sempre à
espreita. Daí – em muitos casos – se render ao discurso fácil de mais polícia,
mais viaturas, mais armas, mais munições, mais corpos estendidos no chão. Pouco
informada, ignora que aquela é apenas a face mais visível, menos poderosa,
menos complexa e menos sofisticada do crime.
No
Brasil, hoje, o crime se aprimora e se organiza como nunca. Virou indústria,
negócio altamente rentável. Seus ganhos não se distribuem apenas entre aqueles
que se envolvem diretamente na atividade. Para que estes possam atuar, há uma
vigorosa – e silenciosa – estrutura por trás. Políticos, empresários, policiais,
membros do judiciário, servidores públicos, há muita gente beneficiando-se com
a estrutura corrupta que ampara o crime.
Muitos
que inflam o peito para criticar a descriminalização de drogas, por exemplo,
estão pouco preocupados com saúde ou costumes. Defendem, no fundo, a estrutura
corrupta e criminosa que os beneficia. Como essa gente embolsaria seus milhões
se a produção e a comercialização de drogas fossem legalizadas? Essas questões,
porém, surgem pouco na imprensa. Isso quando surgem.
Protegidos,
os criminosos de colarinho branco ignoram a matança que se vê pelas ruas. Desde
que seus lucros estejam assegurados, está tudo bem. Aliás, a própria expressão
“criminoso de colarinho branco” sumiu da imprensa faz tempo. Hoje, há pouca
gente disposta a importuná-los.
Vê-se pouca disposição na
Bahia e na Feira de Santana para discutir essas questões. Aqui, aliás, a
preocupação deveria ser grande. Afinal, despontamos como campeões nessa matança
que deveria envergonhar o Brasil. Mas imagino que tudo vá seguir na mesma toada,
como sempre seguiu. Não há debate sobre alternativas ao horror, à matança, ao
extermínio. Essa – é necessário reconhecer – a extrema-direita ganhou...
Já
comentei neste espaço que, no passado, me dediquei à cobertura policial aqui na
Feira de Santana. Entre idas e vindas, foram cerca de seis anos. Tempo
suficiente para testemunhar muita desgraça, muita tristeza, muito sofrimento.
Não rendeu um estudo sistemático sobre a violência aqui na Princesa do Sertão,
mas implicou em um extenso aprendizado não apenas sobre a violência, mas também
sobre a desigualdade, a exclusão e a omissão. Esta última sobretudo por parte
do Estado.
Nos
anos seguintes, acompanhando estatísticas, lendo livros sobre o tema e
escrevendo artigos de opinião com frequência, fui cristalizando a constatação que,
no circuito da violência, mudam as personagens com assustadora regularidade,
mas os processos que o geram permanecem imutáveis, quase intocados.
Em
21 de novembro de 2012, por exemplo, publiquei o texto “Feiraque ou “Feiranistão?”:
a escalada da violência”. Foi no site Infocultural, do saudoso amigo jornalista
Geraldo Lima. Comentava, então, sobre seis assassinatos registrados aqui na
Feira de Santana numa terça-feira. Pois bem: quase 12 anos depois, sexta-feira
(10), ocorreram impressionantes oito homicídios.
Nada
mudou, como se vê. Tanto que até pego emprestadas algumas frases daquele texto
longínquo: “Em alguns bairros, a taxa de homicídios deve se aproximar daquelas verificadas
em regiões que vivem sob conflito declarado (...) Noutras palavras, circular pelas
ruas da Feira de Santana, hoje, é perigoso. Muito perigoso”.
Tem
mais: “Quem mata aposta numa impunidade que é quase certa: poucos assassinos
costumam ser identificados e apenas uma minoria vai para o banco dos réus.
Parece mais provável que o criminoso prove do próprio veneno: lá adiante, ele
pode ser alvo de uma vingança ou, simplesmente, ser tragado pela espiral de
violência na qual mergulhou”.
Nada mudou? Talvez esteja
enganado. As facções – fenômeno que se consolidou ao longo da última década – e
a homicida liberação de armas tornaram tudo muito pior. As mortes se sucedem,
aumentam e o estrugir de palmas da população acuada também. Que resta, então? Lastimavelmente,
finalizei o texto de 12 anos atrás da mesma forma que finalizo este, o que
comprova que nada melhorou: “Por hora, resta ao feirense apenas rezar pelos que
tombaram e torcer para não ser a próxima vítima”.
Percebo
que, nos últimos tempos, escrevo com freqüência sobre o clima, sobre mudanças
climáticas. Não, não se trata de recurso de quem não tem assunto, nem de apelo
de quem anseia ser lido e, por esta razão, recorre a assuntos polêmicos. É que
a emergência climática está aí e não dá para ficar ignorando. O desastre no Rio
Grande do Sul veio para comprovar – mais uma vez – que o assunto deve ser
tratado com seriedade.
Por
aqui não aconteceu nenhuma catástrofe comparável àquela que assola os gaúchos.
Mas é indiscutível que o clima já não é o mesmo na Feira de Santana. A partir
de setembro do ano passado, por exemplo, as temperaturas subiram, bordejando os
40 graus de sensação térmica com regularidade.
Um
dia ou outro com calorão intenso, vá lá, sempre aconteceu; o mormaço que
antecede as trovoadas, também sempre se viu. Mas a sucessão de canículas que
tornou a vida por aqui quase insuportável foi novidade. Ardente novidade,
diga-se de passagem. Depois vieram as chuvas, caudalosas, torrenciais, que
alagaram parte da cidade. Até situação de emergência teve que ser decretada.
Sei
que se vive aqui no Brasil a era dos negacionismos. Pior ainda: a do
negacionismo do negacionismo, pois não falta quem faça ou diga absurdos e,
depois, negue com cândido semblante. Noutros tempos, isso era cinismo. Mas,
enfim, é melhor não perder o foco, como diria o coach, e voltar às graves questões climáticas.
Por
mais que se negue, essas mudanças climáticas – e seus efeitos – estão aí,
alcançando todos, mas, sobretudo, os mais pobres e os mais vulneráveis. É
necessário começar a fazer alguma coisa. Aqui na Feira de Santana, por exemplo,
é preciso começar a discutir a questão, ver o que é possível fazer em nível
local.
Sempre
observo que a melhor época de trazer discussões do gênero à tona é em período
eleitoral, como o que se avizinha. O que pretendem fazer os candidatos a
prefeito em relação à novidade – terrível novidade – das mudanças climáticas?
No Rio Grande do Sul fez-se
pouco, revela a imprensa. Os valores reservados para a prevenção de desastres são
ínfimos. Será que caminhamos – guardando as devidas proporções – para
desventura semelhante aqui na Feira de Santana? É bom lembrar que não nos
faltam estiagens, nem tempestades ocasionais. E – o que é mais preocupante – também
nos falta planejamento.