Nos
anos 1990 as grandes ondas ideológicas eram o neoliberalismo e a globalização.
A primeira conduziria o mundo à segunda. Mercados abertos e desregulamentados
favoreceriam a circulação de bens, produtos e serviços, otimizando custos e
franqueando o acesso ao que cada lugar produz de melhor. Seria o paraíso
liberal aqui mesmo, na terra.
Alguns
sacrifícios seriam necessários, claro. O maior deles seria revogar a caquética
legislação de diversos países – sobretudo a trabalhista – e avançar, com
destemor, em direção à abertura dos mercados. Naquele contexto, a União
Europeia surgiu como paradigma absoluto. Orquestrava-se, para as Américas,
projeto semelhante: a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca.
As
condições draconianas impostas pela proposta – só os Estados Unidos levariam
vantagem – e a ascensão de governos à esquerda na América do Sul sepultaram a
iniciativa. A frenética imprensa “liberal” brasileira, no entanto, seguiu
vociferando, acusando protecionismo, nacionalismo e outros “ismos” disponíveis
nas prateleiras ideológicas. Nunca se conformou com a “fraquejada” à esquerda.
Desde
então o mundo mudou muito. A China – que, à época, era coadjuvante na economia –
ascendeu e, apesar do rótulo de comunista, figura como um dos países mais
globalizados. Seus investimentos e produtos irradiaram-se pelo planeta, numa
expansão vertiginosa.
Conflitos
religiosos se intensificaram, sobretudo sob a tradicional dicotomia
Ocidente-Oriente; a Europa – curiosamente – perdeu protagonismo relativo na
economia e na política; e os Estados Unidos, também em declínio relativo, hoje,
se dividem numa batalha surda contra China e a Rússia, esta última velha
conhecida.
Ao
longo do processo, a extrema-direita foi avançando. Donald Trump venceu nos
Estados Unidos e, ao fim do mandato, tentou um golpe de estado; por aqui,
repetimos o roteiro: Jair Bolsonaro, o “mito”, tornou-se presidente e sua turba
também tentou um golpe no fim do mandato. Mundo afora, a extrema-direita –
aplicando sempre métodos semelhantes – foi vencendo, impondo sua agenda de
horror.
Domingo
(09), na Europa, a extrema-direita avançou mais alguns degraus no Parlamento
Europeu. Não foi a vitória que alardeavam, mas avançaram; a imprensa, temerosa,
vem tentando minimizar. Ainda alimenta esperanças no neoliberalismo, na
globalização.
Não
é o que se vê mundo afora. Nacionalismo, militarismo e xenofobia divergem, em
absoluto, do receituário político liberal. Quem ainda recorre a ele, apega-se à
pauta econômica, mas só até certo ponto. É o que se vê no Brasil, amplamente
contaminado pela sarna da extrema-direita.
Por
aqui, viceja o discurso do “privatize-se tudo”. Não por princípio, mas por
oportunidade de negócios, quase sempre escusos. De forma mais direta, corrupção;
a praga do Estado mínimo é só para o pobre que, se ficar reclamando, torna-se
alvo das polícias. Competição é discurso da boca pra fora: quem tem força,
recorre aos amigos parlamentares para abiscoitar subsídios, isentar-se de
juros, do pagamento de impostos, de obrigações trabalhistas.
Hoje, não vejo o “discurso
liberal” no Brasil senão como piada. Há alguns devotos sinceros, honestos. Lá
fora, a coisa está saindo de moda na era do nacionalismo de extrema-direita.
Como o Brasil é muito atrasado, ainda cultiva-se o discurso. Mas a onda virou e
o liberalismo no presente está sendo enterrado, numa nova onda da História.
Meio
incrédulo, soube no fim da manhã de ontem (08) do falecimento da economista
Maria da Conceição Tavares. Portuguesa – mas naturalizada brasileira –
Conceição Tavares contribuiu decisivamente para a formação de gerações de economistas
brasileiros. Ela, Celso Furtado, Ignácio Rangel e Carlos Lessa foram fundamentais
para a interpretação da economia brasileira na segunda metade do século XX.
Essa
contribuição foi essencial para que o Brasil superasse a condição primário-exportadora
e diversificasse sua economia, industrializando-se e, em alguma medida,
modernizando-se. O esforço de industrialização – que começou na Era Vargas há
quase 100 anos – ganhou impulso adicional com o respaldo de estudos e do
trabalho técnico de inúmeros economistas que pelejavam pela industrialização nacional.
Nas
últimas décadas a questão industrial saiu de moda. É bom ressaltar que saiu de
moda, mas segue essencial para se pensar o futuro de um País tão grande,
complexo e diverso como o Brasil. Tempos atrás, pensava-se que o debate
indústria versus economia primário-exportadora tinha sido superado.
Engano: à medida que o agronegócio ganhava relevância, desmantelaram a
indústria no País. Regrediu-se um século.
Ressurgiu,
então, o debate – se é que pode ser chamado assim – sobre o protagonismo do
agronegócio e da economia primário-exportadora. Lunáticos de extrema-direita
gritam nas mídias sociais que o Brasil é o “celeiro do mundo”, que “nossa
vocação é plantar”, que “o planeta depende da agropecuária brasileira” e por aí
vai. Bens industriais? Compra-se lá fora.
Trava-se,
assim, um debate raso, que se move sobre a superfície das coisas, sem mergulhar
em sua essência. Os desastres ambientais, a ressurgência do protecionismo agrícola
na Europa e nos Estados Unidos, a crescente dependência externa, o atraso
tecnológico, nada disso figura nas discussões atuais que, em grande medida, não
passam de bate-boca.
O
fato é que a encruzilhada econômica – para só mencionar esta – em que o Brasil
se encontra exige a releitura de grandes pensadores do naipe de Conceição
Tavares e Celso Furtado. Dado o prolífico festival de sandices que se vê por aí,
autores clássicos da economia brasileira tornaram-se, novamente, atualíssimos.
Sobretudo para quem não conhece nada de História, sobretudo de História
Econômica.
Devo muito da minha
formação acadêmica e da compreensão da economia brasileira a Maria da Conceição
Tavares. Seu falecimento deixa uma lacuna profunda. Deixa-nos, irremediavelmente, órfãos de sua sabedoria.
Ontem
foi o Dia Mundial do Meio Ambiente. Data solene, daquelas que acionam discursos
automáticos de louvação à natureza. Recentes catástrofes climáticas, porém,
estão deixando esses discursos sem nexo. O tempo dos discursos, aliás, ficou
para trás. É necessária ação urgente, porque os efeitos da negligência com o
meio ambiente chegaram. E não se limitam à tragédia no Rio Grande do Sul, não.
É
bom lembrar que o El Niño, que
começou ano passado e se estendeu até 2024, foi devastador. Aqui na Feira de
Santana a temperatura alcançou patamares impressionantes, sempre beirando – ou
ultrapassando – a sensação térmica de 40°. Outubro, novembro e dezembro foram
meses de calor desesperador.
Depois
do calor, vieram as tempestades. Em poucos minutos caíam volumes
impressionantes de água. Ruas e avenidas alagadas, imóveis alagados,
construções danificadas, prejuízos consideráveis, – sobretudo para os mais
pobres que perderam seus bens – tudo isso levou o município a decretar situação
de emergência no começo de 2024.
Depois
a temperatura despencou e as chuvas começaram a cair mansas, às vezes uma fina
garoa prateada encobrindo a cidade com uma cortina diáfana. Pelo jeito, bastou
isso para se abandonar, por aqui, qualquer referência às mudanças climáticas. A
catástrofe no Rio Grande do Sul é distante, nem todo mundo consegue enxergar
conexão.
Seria
bom – neste ano eleitoral – que a Feira de Santana começasse a discutir o que
fazer para mitigar os efeitos das mudanças climáticas por aqui. Ampliação de
áreas verdes, por exemplo, seria um bom tema. Afinal, há poucas árvores em espaços
públicos da zona urbana.
Cuidar
das nascentes e das lagoas que restam – muito do que havia foi soterrado pela
expansão imobiliária predatória – é outra medida que, com certeza, deveria ser
adotada. Há iniciativas complementares, como a educação ambiental e o próprio
incentivo oficial a ações de preservação que mereçam estímulo e apoio fora da
esfera pública.
O
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, ainda não
disponibilizou as informações do Censo 2022 referentes ao meio ambiente em
nível municipal. Mas, pelos números de 2010, percebe-se que a situação é
desanimadora na Feira de Santana: só 48,3% das vias públicas contavam com
arborização; esgotamento sanitário adequado estava à disposição de apenas 59,7%
da população; vias públicas urbanizadas, por sua vez, limitavam-se a somente
17,1%.
Alguma coisa melhorou desde
então? Talvez. Mas é bom lembrar que tudo o que foi feito até aqui é
insuficiente. É necessário pensar – e agir – sobre a questão ambiental com mais
assertividade. Inclusive na Feira de Santana.
Não
se costuma dar grande importância às placas comemorativas ou às de inauguração.
Elas vivem seu ápice nos solenes descerramentos e, depois, caem no
esquecimento. Aquelas expostas ao tempo acumulam poeira, apanham chuvas
inclementes, são castigadas pelo sol tropical. Com o passar dos anos, perdem o
brilho inicial, ficam foscas, algumas ilegíveis. Quem passa costuma observá-las
com indiferença - quando observa! – e segue em frente.
Mas
é inegável que as placas contam parte da História. Vá lá, dentro de uma
perspectiva mais simbólica que informativa. Afinal, os textos cravados nelas
costumam ser curtos, quase sempre só com data e uma lista de nomes e de cargos.
Às vezes a localização ou a matéria-prima utilizada na feitura, por exemplo,
assumem mais importância, dizem muito sobre uma época ou um lugar.
Placas
que vão se acumulando em órgãos ou instituições públicas também revelam
bastante sobre sua trajetória. Boa parte refere-se apenas às inaugurações,
mencionam governantes e – é inegável – oferecem uma versão da História sob um
determinado ângulo.
Uma
parte da História da Universidade Estadual de Feira de Santana, a Uefs, por
exemplo, está contada em suas placas. Módulos – e mesmo prédios nos módulos –
contam com essas referências. Aqui ou ali é possível localizar uma placa
singular, distinta do padrão da mera formalidade inaugural.
É
o caso da placa que registra a presença do então ministro da Educação, Eduardo
Portella, na instituição. Ele compareceu à Uefs no dia 1° de setembro de 1979.
Veio proferir a aula magna daquele semestre da recém-criada universidade
feirense. Há, defronte a um dos auditórios do módulo 1, a placa alusiva à
visita.
Eduardo
Portella nasceu em Salvador e foi criado aqui na Feira de Santana. Descubro,
pesquisando na Internet, que ele era filho de Maria Diva Matos Portella, que dá
nome a uma escola feirense, no bairro Jardim Cruzeiro. Funcionário do
Ministério da Educação e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
tornou-se ministro em 1979. Saiu do cargo no ano seguinte, ao declarar apoio a
uma greve de professores universitários.
Pouco
depois de deixar o ministério, Eduardo Portella foi eleito para a Academia
Brasileira de Letras. Desbancou ninguém menos que o poeta gaúcho Mario
Quintana. A versão que circula até hoje é de que a eleição simbolizou um
desagravo ao ex-ministro, pois Portella batia-se pela abertura política. O
ex-presidente José Sarney foi dos que apoiaram a candidatura do ex-ministro
baiano. Quintana, a despeito de sua inegável importância literária, foi
preterido.
O fato é que a placa está
lá, à vista de quem passa, muda, mas eloquente, prenhe de silêncios e
simbolismos.
Começo
de tarde, sexta-feira. 14 horas, por aí. Sol, luminosidade, vento úmido. Clima
agradável. No calçadão da Sales Barbosa, burburinho: mulheres indo com
embrulhos, homens voltando com embrulhos, gente anunciando promoções imperdíveis
nas portas das lojas, ambulantes apregoando seus produtos – “água, água” –,
crianças, idosos, adultos, o ir-e-vir incessante sobre os bloquetes do piso
intertravado.
Na
Capitão França, palitar de dentes, garfadas vorazes, a primeira cerveja da
sexta-feira, contas quitadas. Risos, vozes, interjeições, gestos largos. Mais
passantes, o ir-e-vir não cessa, os olhares espichados para os produtos
expostos nas vitrines das lojas, também não. Bandeirolas, muitas bandeirolas:
vermelhas, amarelas, verdes, azuis. É o São João chegando.
São
João chegou, mesmo, foi no cruzamento da Capitão França com a Senhor dos
Passos. Ali também a gente ia e vinha, apressada, evitando os carros na faixa
de pedestres, apressando os passos nas calçadas. Afinal, como São João chegou? Pelos
alto-falantes, com a típica sonorização dos períodos festivos:
“Tudo
em vorta é só beleza
Sol
de Abril e a mata em frô”
Soaram
os primeiros versos de “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga. Música dele e de
Humberto Teixeira. Os letreiros chamativos das lojas, os produtos coloridos, os
sorrisos de quem vende e de quem compra, luzes refletidas sobre os lombos dos
automóveis, o sol do maio que findava, tudo recendia a vida, contrastando com
aquela canção tristíssima. Mas ela seguiu em frente:
“Mas
Assum Preto, cego dos óio
Não
vendo a luz, ai, canta de dor”
Caixas
de som nas portas das lojas – o nordestino só mercadeja com música, não há silêncio
em seus centro comerciais – tocavam forrós diversos, tentando atrair a
clientela. Mas Luiz Gonzaga prosseguia, a sanfona chorando que era uma beleza:
“Tarvez
por ignorança
Ou
mardade das pió”
Entretida
nas compras, a gente que passava ignorava Luiz Gonzaga, sua sanfona, o drama
comovente do Assum Preto. Era necessário avançar, atravessar a Senhor dos
Passos, pesquisar preços, preparar-se para os festejos juninos. Para tanto,
ignoravam Luiz Gonzaga, cujo canto sofrido talvez até profanasse a tarde de sexta-feira:
“Furaro
os óio do Assum Preto
Pra
ele assim, ai, cantá mió”
Ali
no Lambe-Lambe a canção aproximava-se do fim. A mesma indiferença por Luiz
Gonzaga nos carrinhos-de-mão que ofereciam frutas, verduras e legumes e, também,
os ingredientes dos bolos juninos, o amendoim que o feirense consome o ano
inteiro, mas mais ainda em junho:
“Assum
Preto veve sorto
Mas
não pode avuá”
Com
os últimos acordes, antigas lembranças juninas foram se desfazendo, retornando
ao fundo da memória. O gatilho que as disparara – entronizando o São João – findava,
já no Beco da Câmara, repleto de automóveis, de gente, de bicicletas, de motos.
Os versos mais profundos, no entanto, persistiram na cabeça, sustentando o fio
das lembranças de remotos períodos juninos:
“Mil
vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai,
pudesse oiá”