Coisa
de se admirar no centro da Feira de Santana é a procissão de viajantes que
visita a cidade às segundas-feiras. Durante toda a semana o afluxo é grande, é
verdade, mas a segunda-feira é especial. Não apenas pelo movimento mais intenso
no Centro de Abastecimento e no entorno, mas porque o dia, em si, é impregnado
de uma densidade simbólica, consolidada desde os tempos da antiga feira-livre
no centro da cidade.
Quantas
pessoas visitam o município às segundas-feiras, ao longo da semana? É difícil
dizer. Nunca ouvi falar de nenhum levantamento do gênero. Seria bom fazê-lo.
Mas é necessário fazê-lo buscando resposta para uma pergunta: o que os
viajantes vêm buscar aqui na Feira de Santana, que tipo de serviços eles
demandam? A pergunta é fundamental, ponto de partida para uma pesquisa
criteriosa.
Comércio
e alguns serviços justificam o fluxo maior às segundas-feiras. O dia ocupa
lugar especial no imaginário dos sertanejos. As manhãs também são especiais: a
cultura rural valoriza a manhã, nela se concentra boa parte das atividades
produtivas. Isso – talvez – ajude a explicar o fluxo mais intenso na manhã de
segunda-feira, mais gente na rua e comércio mais agitado.
Mas,
conforme se disse, o movimento se estende pelos demais dias da semana também,
embora com menos intensidade. São comuns os deslocamentos em busca de
atendimento especializado em saúde, por exemplo. Estes se diluem por toda a
semana.
Pacientes
lotam clínicas, hospitais e consultórios, misturando-se à população feirense. Percebe-se
que costumam chegar no começo da manhã e, no início da tarde, muitos estão de
partida, embarcando em vans e veículos diversos de passeio.
Também
é significativa a demanda por educação, que também se dilui por toda a semana.
A Feira de Santana abriga duas universidades públicas – a Uefs e um campus da
UFRB, - além de diversas faculdades particulares. O fluxo estudantil, a
propósito, se verifica até mesmo à noite. Mas é mais corriqueiro durante o dia,
não é difícil enxergar veículos padronizados de prefeituras das cercanias.
Há
também fluxo contínuo daqueles que deixam suas cidades para trabalhar na
Princesa do Sertão. Alguns passam a semana, mas há os que se aventuram em cansativos
bate-e-volta. Normalmente, residem em municípios próximos e são atraídos pelas
oportunidades de emprego.
A
partir do início da tarde, é intenso o fluxo de veículos de transporte
intermunicipal nas principais saídas da cidade. BR 324, BR 116 Norte e Sul,
rodovias estaduais como a BA-502 (Feira-São Gonçalo) ou a BA-504 (Feira-Irará e
Santanópolis) ganham vida com cobradores e motoristas apregoando os destinos do
entorno.
Vale
a reiteração da pergunta: quantos viajantes de municípios próximos visitam a
Feira de Santana? A partir desta indagação – repita-se – desdobram-se muitas
outras. Inclusive aquelas que se referem à qualidade do transporte ofertado a
estes visitantes. Quem aprecia a procissão de viajantes, o vir-e-ir incessante,
não deixa de constatar também como os serviços são precários...
As
lembranças são dos anos 1980. Naquele tempo a Sales Barbosa não devia ser tão
movimentada. Mas, menino, supunha que o ir-e-vir era intenso, compararia hoje ao
da Avenida Paulista, ao da Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de
Janeiro. Via-me desnorteado observando o mundo de baixo, mulheres e homens
passando apressados, numa vertigem.
Deduzo
que não era assim, as sensações de menino amplificam tudo. Inclusive porque
havia um canteiro bem no meio do calçadão, as barracas dos camelôs ainda não
haviam se irradiado por ali. No canteiro não havia flores, só a terra morta e pálida
sobre a qual despejavam-se palitos de picolé, bitucas de cigarro, cascas de
laranjas, espigas de milhos devorados.
Às
portas das lojas comerciários e comerciantes aguardavam a clientela, pacientes.
A cidade apenas começava a se expandir, o trânsito era tranquilo e boa parte da
população residia dentro do Anel de Contorno. Mas algo emprestava tensão àquele
pacato centro comercial: os “marreteiros”.
Eles
chegavam apressados e montavam o palco: uma caixa de papelão sobre um tamborete,
três pequenas formas de alumínio e uma bola de gude que alguns envolviam em
veludo. Daí começavam o pregão, chamando a clientela, os incautos que apostariam
seus magros trocados naquele jogo viciado.
Mãos
agilíssimas moviam as formas, a fala ininterrupta – quase sempre aos berros – cobrava
do apostador uma definição, a indicação da forma sob a qual repousava a bola.
Dedos hesitantes ou firmes – isso aí dependia do temperamento do apostador –
indicavam a forma escolhida. Quase sempre a bola não estava ali. Se estava,
sumia num rápido movimento de dedos.
Em
volta aglomerava-se, às segundas-feiras, uma plateia de tabaréus, os chapéus destacando-se.
Tudo era sempre muito rápido, os “marreteiros” olhando em volta, atentos à
chegada da polícia. Qualquer alarme, recolhiam seus apetrechos e desapareciam
pelos becos estreitos, os passos apressados.
-
São os marreteiros – Explicou meu pai, um dia, riso nos lábios, quando indaguei
o que significava tudo aquilo.
Os
“marreteiros” enganavam os apostadores – os “pexotes” – escondendo as bolas aveludadas
entre os dedos com gestos de prestidigitação. Eram velozes, mãos mais velozes
que os olhos dos “pexotes”. Em volta havia, também, os “esparros”. Eram os
falsos apostadores – sócios no embuste – que simulavam ganhos para instigar os
incautos.
Aquilo
se perpetuou durante algum tempo. Montavam a banca sempre em dia de movimento,
sem regularidade ou lugar fixo: surgia no Lambe-Lambe, na Praça dos Remédios,
até na Marechal Deodoro. Creio que, com o tempo, o golpe foi se tornando mais
conhecido e os “pexotes” escassearam. O crime se tornou também mais imediatista
e violento, os assaltos a mão armada se impuseram.
Isso
não significa, porém, que “marreteiros” e “pexotes” desapareceram de todo.
Diria até que ressurgiram com muita força nos últimos tempos, com a
proliferação dos jogos de azar pelo país. Modernizaram-se, migraram para o
universo digital. Os “pexotes” seguem sendo tratados como apostadores; os “marreteiros”
viraram CEO de casas de apostas, influencers, rifeiros.
No
fundo, a patifaria segue a mesma. Mas que hoje ganhou glamour, isso é inegável...
Durante
a pandemia ouvia muito a programação musical das emissoras de rádio. As noites
eram estranhas. Sobretudo nos primeiros meses do isolamento social, as notícias
alarmantes sobre mortes se avolumando. O rádio ligado, à noite, afastava um
pouco as apreensões, os medos, a própria solidão, pitoresca, que não era
individual, mas coletiva. Foi quando numa noite de domingo – todas as noites
pareciam ser de domingo – tocou “Roda Viva”, de Chico Buarque.
Ouvir
música no rádio é sempre instigante. Do nada, subitamente, toca uma canção que
transporta o ouvinte para uma viagem em direção à própria memória. Essa viagem costuma
se estender pela duração da canção. Depois finda, mas ficam umas
reminiscências, martelando sentimentos quase adormecidos.
Quando
“Roda Viva” começou, o cenário parecia aguardá-la. O armário com os livros,
melancólicos, à vista dos olhos, a luz suave que não espantava a escuridão, o
profundo silêncio na rua, o céu vazio de estrelas, a expectativa e a tensão,
subjetivas sempre. O “Lá-iá/Lá-iá/Lá/iá...” masculino do MPB4, sonoro, grave,
preparou a imersão naquele clima.
Depois
veio a voz de Chico, profunda, anunciando o contexto da canção, embora não o
mencionasse. “Roda Viva” era música composta para uma peça do próprio
compositor, gestadas naqueles anos iniciais da ditadura militar. A gravidade, a
desesperança, o medo, tudo permeia a canção para quem ouve, considerando seu
contexto.
Décadas
depois, ouvindo-a inesperadamente no trágico período da pandemia, um turbilhão
de sentimentos veio à tona. Sobretudo no trecho da letra que revela a pequenez
dos nossos planos em momentos como aquele: “A gente quer ter voz ativa/No nosso
destino mandar/Mas eis que chega a roda-viva/E carrega o destino pra lá”. Que
controle do destino havia naquele momento da pandemia? Mais ainda: e mesmo sem
ela? Quem controla o destino?
Havia,
ainda, o horror da extrema-direita no poder, o ostensivo desprezo pela vida. Os
anos passaram e a pandemia findou. A própria extrema-direita deixou o poder.
Mas parte do horror permanece aí e serão necessárias décadas para mitigá-lo,
reverter parte dos seus efeitos.
Em
relação à questão ambiental, porém, o tempo urge. Nas últimas semanas as
queimadas mostram que o instinto de destruição permanece ativo, talvez com
ainda mais apetite. Sem dúvida, o tempo das certezas – dos arrumadinhos
projetos individuais – passou. As incertezas – sobretudo as climáticas – são a
regra agora.
Setembro
começa, logo mais é primavera e – reconheço – essas divagações são sombrias.
Então, que permaneça a esperança que a canção de Beto Guedes, “Sol de
Primavera”, exprime tão bem: “Quando entrar setembro/E a boa nova andar nos
campos”...
Foi
no domingo de manhã. Depois de longos meses de silêncio, ouvi o trinado de um
sabiá. O sol era caricioso e o céu, muito azul, já tinha um quê de primavera,
até de verão. Ouvi-lo, então, tornou o momento na manhã muito mais especial.
Atento, notei também o canto mais constante da casaca-de-couro e percebi que os
bem-te-vis estavam mais álacres.
Tudo
indica – pensei – que a partir daqui, virá o verão, dias de estio e muito
calor. O inverno foi pobre de chuva e de frio. Alguns dias foram escaldantes,
ao meio-dia o sol estonteava. Apenas a noite, com uma suave queda de
temperatura, mantinha a lembrança de que ainda é inverno.
Pois,
subitamente, as garoas do inverno reapareceram ao longo da semana, baixando a
temperatura, resgatando os agasalhos dos armários e restabelecendo o caos no
trânsito feirense. Simples deslocamentos pelo centro comercial da Feira de
Santana tornaram-se verdadeiras provas de paciência.
A
previsão do tempo indica que, mais à frente, as chuvas continuarão, com os
efeitos do fenômeno La Niña. Quem vive no campo e planta feijão e milho se
decepcionou. As chuvas que pareciam promissoras em março e abril escassearam. A
plantação brotou, feneceu e morreu. Ironicamente, agora as chuvas voltam, numa
espécie de inverno tardio.
“O
clima anda louco!”, comenta-se, numa alusão às mudanças climáticas. É verdade.
Chuvas e estios desafiam até a ancestral sabedoria de quem labuta com a terra,
no campo. Talvez zombe até do sabiá que, imprudente, precipitou-se, antecipando
seu canto que é exclusivo das estações ensolaradas.
Sei
que, nos últimos dias, o sabiá desapareceu. Talvez tenha reconhecido que se
precipitou. Entre uma chuva e outra, os bem-te-vis insistem e a casaca-de-couro
sustenta seu canto em par. Há também os pios dos pardais. Mas os pardais piam o
ano inteiro, não faz diferença.
Arrematando
o texto, lembro das andorinhas, as que fazem o verão, conforme a canção famosa.
Dias atrás cheguei a vê-las, rasgando os céus com o seu voo azulado, muito
alegres. Mas desapareceram também, as nuvens pesadas, acinzentadas,
tangeram-nas.
Amanhã começa setembro. Mas
uns dias e chega o calor e o tempo das trovoadas típicas do final de ano. Virão
este ano? Os metereologistas dizem que, no Nordeste, sim. Tomara que venham.
Nem que seja para reorientar o nosso sabiá que, desde o domingo, desapareceu
novamente...
Pastel,
coxinha, banana real, esfiha, quibe, enroladinho, croquete. No mais, quase
sempre muita massa. Pão com recheio de carne, pão com recheio de frango, pão
com recheio de queijo e presunto, pão com recreio de linguiça calabresa, pão
com recheio de frango com catupiry. Fatias de pizza, há também fatias de pizza:
muçarela, quatro queijos, frango, calabresa, portuguesa.
Bebe-se:
sucos de polpa multicoloridos, refrescos, sucos artificiais multiprocessados, refrigerantes,
em lata, em garrafa plástica, em garrafa de vidro, suco de fruta no liquidificador,
até café e água de coco.
Painéis
multicoloridos, chamativos, convidam os potenciais clientes que vão passando. A
peça – um salgado – custa R$ 2. A peça mais um refrigerante, R$ 5. Três peças podem
sair por R$ 5 na promoção. Quem leva 30 peças conta com um desconto ainda mais bacana:
cada salgado sai por R$ 1,50.
Basta
circular pelo antigo centro comercial da Feira de Santana para se deparar com
essas ofertas. Ruas Conselheiro Franco, Monsenhor Tertuliano Carneiro, Sales
Barbosa, Marechal Deodoro, avenidas Senhor dos Passos e Getúlio Vargas, até nos
becos estreitos que conectam as vias centrais do centro pululam lanchonetes com
suas ofertas imperdíveis.
Na
lufa-lufa do dia a dia é possível enganar a fome com irrisórios R$ 5: dois
salgados miúdos, um copo de refresco. Muita gente lota os balcões estreitos,
metálicos, das lanchonetes. Outros compram e saem com o produto em sacolas
plásticas, em sacolas de papel.
As
lanchonetes avançam de forma avassaladora, muitos restaurantes sumiram do
centro feirense. Os que sobrevivem apostam no self service: dois pedaços
de carne, os demais alimentos à vontade por R$ 18, por R$ 20. Alguns – poucos –
sustentam preços até inferiores, 17 ou 16 reais, nunca menos de R$ 15. Quem
dispõe de pouco, portanto, nem hesita: devora os salgados, porque um prato de
comida custa mais que o triplo.
Porém,
quem não abdica do feijão com arroz, da carne, da salada e da farinha conta também
com as barracas. São dezenas, em espaços diversos, ainda não foram removidas do
centro feirense. Como atrativo, ao longo da semana oferecem os pratos gordurosos
que fazem a alegria dos glutões baianos.
O
centro feirense – no fundo, o centro antigo de qualquer grande cidade – vai mudando
sem cessar. Uns poucos anos, até alguns meses, trazem transformações marcantes.
A dimensão gastronômica é uma delas, mas não a única...