Não foi hoje, nem foi ontem. Mas o papo – por atemporal – merece ser resgatado. Como sempre, tratou-se de uma dessas conversas de botequim, sem propósito ou finalidade. Às vezes, algumas delas – estranhamente – ficam, depois, ressoando na memória. Foi o caso.
– Eu vinha de cá, o sujeito de lá. Bem no Nagé. Não nos
cumprimentamos. Mas a lembrança do passado veio, num cruzar de olhos...
A piada cretina sobre o cruzar de olhos foi inevitável, mas
foi repelida com um gesto enérgico. O papo tomava um rumo sério demais para deboche
juvenil. Prosseguiu:
– De imediato, veio a lembrança dos ‘babas’ antigos, lá nas Baraúnas de Cima. Ainda havia a lagoa, a
vegetação e nenhum galpão. O campo lembrava um gramado, tinha uma relva escorregadia,
sobre a qual deslizávamos, nas manhãs de sábado de 1989...
Parou, tomou um pouco de fôlego. Tudo sinalizava que não era
só uma reminiscência de infância, uma recordação dessas que reluzem quando se
encontra alguém conhecido do passado. Seguiu adiante:
– Pois o cidadão vinha mancando. Estava com um problema na
perna, que dificultava sua locomoção...
Lembrou que o sujeito organizava os ‘babas’, guardava a bola
e as traves do golzinho – de hastes
metálicas, soldadas – e, também, se destacava nas pelejas. O jovem ágil de
décadas antes se transformara num cidadão de meia-idade, com dificuldade de
locomoção. Revelou que o mal-estar foi inevitável:
– Poderia achar que era um problema pontual daquele rapaz,
cujos cabelos, inclusive, estavam ficando brancos. Mas não vi assim. Pensei em
mim mesmo, em todo mundo. El tiempo pasa...
Naquela época, a juventude parecia eterna e o futuro uma
referência remota. Mas os anos foram passando, a turma se dispersou, cada um
foi cuidar da própria vida. Eventualmente, encontrava um ou outro. As marcas do
tempo foram se traduzindo em pequenos sustos. Até aquele choque, o mais
marcante de todos:
– Senti, então, que o tempo passou pra todo mundo. Pensei no
futebol. Eu próprio jamais conseguiria repetir os dribles desconcertantes, as
arrancadas que me diferenciavam – argumentou, sem modéstia. Mesmo que ganhei
peso. Você também: acumulou uma pança e os cabelos se foram. O cabelo que sobrou
está quase todo branco – disparou.
O grande problema – prosseguiu – é com as mulheres. Observou
que, durante muito tempo, julgou que, para ele, a juventude seria eterna. As
mulheres nunca o ignoravam, apontava, também sem modéstia. Mas, de uns tempos
pra cá:
– Simplesmente não me veem. Parece que estou fora do mercado,
pra usar uma expressão da moda. É uma ou outra que olha, quase sempre só por
curiosidade – lastimou.
Ruminou-se que o tempo é implacável, o passar dos anos alveja
todo mundo. Até quem era jovem em 1989. Aliás, desde aquele ano, muita gente
nasceu e muita gente morreu, é necessário acrescentar. Mas o tipo – autêntico
espírito baiano – não perde a bossa:
– Olha que, desde 1989, o Bahia não disputava a Libertadores.
Voltou, agora. Talvez seja um sinal de que a coisa vai melhorar à frente,
profetizou, vagamente convicto. Era necessário saber como:
– Sei lá. Não inventaram o Viagra? Virá um elixir que
rejuvenesça, reponha cabelo, remova ruga, arroche barriga. Pra cabeça, um chip
qualquer, que sintonize com os dias atuais, com os papos atuais...
Entusiasmado, entornou de uma vez o copo americano cheio de
Heineken estupidamente gelada. Fez uma careta. Recordou que, noutros tempos,
cerveja era só Brahma e Antarctica, além da Malt 90. Kaiser veio só depois,
lembrou, com ânimo.
Por fim suspirou, viu os carros passando, recordou que,
antigamente, as cores dos carros eram mais bonitas. Havia, por exemplo, o
Escort conversível, azul metálico.
De todas as maravilhas especuladas, a mais urgente para ele, talvez, seja o tal chip que sintonize com os dias atuais...
A Praça do Tropeiro voltou ao noticiário, nos últimos dias. Tudo por conta do tradicional samba que acontece ali, às segundas-feiras, capitaneado pelo sanfoneiro Luizinho dos Oito Baixos. Muita gente – inclusive de fora – marca presença por lá, para dançar e se divertir. O evento mantém viva, na cidade, a tradicional cultura das apresentações musicais nas feiras livres do interior do Nordeste.
Mas a Praça do Tropeiro vai além do tradicional – e
empolgante – samba das segundas-feiras. O espaço é um concorrido ponto de
desembarque e embarque de passageiros, que vêm das dezenas de comunidades
rurais da Feira de Santana e de diversos municípios do entorno. É grande o
movimento no começo da manhã, sobretudo às segundas-feiras.
Tanta agitação se deve à localização estratégica da Praça do
Tropeiro. Ela fica a alguns passos do shopping popular e do outrora fervilhante
Centro de Abastecimento. Muita gente que compra – e que vende – resolve seus
negócios por ali. O frenético sobe-e-desce das vans, dos ônibus, dos carros de
passeio atesta o dinamismo.
A Praça do Tropeiro também está perto dos estabelecimentos
comerciais da Rua Recife – que conduz ao centro da cidade –, da Rua de Aurora e
da Praça Dois de Julho. Perto, também, do próprio centro da cidade, distante
uns poucos minutos de caminhada.
Mas – apesar de sua inegável importância – a Praça do
Tropeiro está em situação deplorável. Dezenas de barracas vendem comida e
bebida por ali, atraindo frequentadores, ao longo do dia.
As barracas, porém, são antigas e estão se deteriorando. Não
há sanitários disponíveis, no entorno. O esgoto escorre sobre as pedras
portuguesas, que estão se soltando, e há muita sujeira.
Revitalizado, o espaço pode abrigar apresentações artísticas,
fortalecendo a cultura e dinamizando o diverso comércio do entorno. Até já
existe um anfiteatro, que, caso coberto, pode abrigar os eventos, alavancando o
movimento, por lá.
A Feira de Santana merece uma Praça do Tropeiro nova,
pulsante, que abrigue, no futuro, as vibrantes manifestações da cultura
sertaneja...
Nos últimos dias, circula a informação, no noticiário, que o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) firmaram, mais uma vez, uma trégua. Talvez seja mais que uma trégua, uma aliança. Possivelmente, não se trata de boato ou especulação, mas a informação ainda carece de efetiva confirmação.
Há tempos, as duas facções sustentaram uma parceria que se
iniciou no começo dos anos 2000 e se estendeu até, aproximadamente, 2016.
Depois, vieram as desavenças e uma carnificina, que começou nos presídios e
ganhou as ruas de boa parte do País.
Nas maiores cidades do Nordeste, o conflito ganhou proporções
quase que de guerra civil. Alguns municípios da região – incluindo a Feira de
Santana – figuram entre os mais violentos do mundo. Criteriosos levantamentos
sinalizam para essa triste realidade, ano a ano.
Ironicamente, a matança pode se reduzir com a potencial
aliança. Afinal, esta pode induzir um cessar-fogo, com a consequente queda no
número de assassinatos. Triste realidade: a ação do poder público, em si, não
inibe a criminalidade; é o sinistro pacto entre líderes da bandidagem que pode
controlá-la.
É claro que, Brasil afora, governantes e autoridades
policiais sempre capitalizam as pontuais reduções nos índices de criminalidade.
Quando estes sobem, a culpa é de quem morre ou da família de quem morre. O script é invariável, do Oiapoque ao
Chuí.
Será que a cogitada aliança – caso se confirme – terá alcance
para induzir um cessar-fogo nas periferias e bolsões de pobreza da Feira de
Santana, por exemplo? Será necessário aguardar os desdobramentos.
Por enquanto, no Brasil, o crime não está inteiramente
hierarquizado, sobram facções minúsculas e quadrilhas que escapam destas
tratativas da elite mafiosa. Pode ser o caso da Feira de Santana.
Caso os conchavos produzidos pelos líderes da bandidagem produzam resultados efetivos nas ruas, só parte da violência vai declinar. Afinal, milícias e milicianos crescem no País, conforme atesta o noticiário. E há, também, a assustadora vertente da violência policial – a oficial – que assegura ao Brasil o nada honroso título de uma das polícias que mais matam no mundo...
É comum, nas conversas com a gente da Feira de Santana, ouvir o comentário: “Feira é grande!”. Quase sempre, porém, essas observações se referem à Feira de Santana urbana, citadina, com suas ruas e avenidas, largos e praças, bairros e distritos.
Há, porém, uma Feira de Santana pouco conhecida, que só vem à
tona em notícias esparsas, em comentários ocasionais. É a Feira profunda, que
vai além dos distritos e que, para boa parte da população, só existe nos mapas.
O município de Feira de Santana – o somatório das áreas
urbana e rural – é grande: corresponde a 1.304 quilômetros quadrados. É maior
do que o Rio de Janeiro, a capital fluminense, com seus 1.200 quilômetros
quadrados.
Quem me advertiu sobre essa informação – pouco conhecida, aliás – foi Antônio Rosevaldo Ferreira, professor de economia da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs).
A Princesa do Sertão, a propósito, perde, por pouco, para a megalópole São Paulo, com seus 1.521 quilômetros quadrados. Em relação a Salvador – espremida pelo mar –, a vantagem é significativa: a antiga Cidade da Bahia tem pouco menos de 694 quilômetros quadrados.
As duas principais metrópoles brasileiras são imensas – e áridas – extensões de concreto e asfalto. Faz pouco sentido – ou nenhum – discutir o rural, nesses lugares. A Feira de Santana, porém, é um interminável suceder de imóveis de um, dois ou três pavimentos, na média; mas dispõe de uma ampla e pouco debatida dimensão rural.
Quem sabe quais são os extremos feirenses, ao Norte e ao Sul,
a Leste e a Oeste? Todos são rurais. Normalmente, fazendas e pequenas
comunidades. Compõem – imagino – paisagens bem diversas, abarcando a caatinga
inóspita e a larga faixa litorânea, ampliada com seus vestígios de mata
atlântica.
Bem ao Norte – o ponto mais extremo “lá em cima” –, o
município faz fronteira com Candeal. Uma mesma fazenda – Malhada da Areia –
está nos limites dos dois municípios e é cortada pelo Rio do Peixe, que
delineia a fronteira da Feira de Santana e de Candeal.
A localidade Caiçara, entre as fazendas Serra da Agulha e Ipanema, é a que está mais ao norte. Nas cercanias, mais ao Sul, está o distrito de Jaguara. No extremo oposto, ao Sul, estão as fazendas Cumbe e Mocó, que delimitam a Feira de Santana naquela direção. Estão próximas do antigo distrito de Ipuaçu, hoje, Governador João Durval Carneiro.
Localizam-se pouco mais ao Sul das fazendas Meu Sonho e
Rancho Rio Fundo, no distrito de Humildes. Limitam-se – todas elas – com o
vizinho município de São Gonçalo dos Campos. Nesta porção de extremo Sul, o Rio
Jacuípe delimita a Princesa do Sertão.
Bem perto de Humildes, localiza-se, curiosamente, o ponto
mais a Leste da Feira de Santana. É uma espécie de tríplice fronteira, com os
municípios de Conceição do Jacuípe e Coração de Maria.
Não é distante da BR 324, nem do acesso à BR 101, que fica um
pouco mais ao Sul. O ponto de referência mais próximo é a Escola Municipal José
Pinto de Souza.
Por fim, há o Oeste feirense. Este se delimita com o
município de Serra Preta. A fazenda Gameleira é um ponto de referência próximo,
mas há, também, uma escola, a Timóteo Moreira Duarte.
No mapa, aquela região – no distrito de Bonfim de Feira – tem
um recorte curioso: estreita-se na localidade de Pedra Branca, alargando-se
mais a Oeste, alargando-se muito, entre os municípios de Anguera e Ipecaetá.
Apresenta paisagem tipicamente de caatinga.
No meio destes quatro quadrantes, há a chamada mancha urbana,
os distritos e suas comunidades. Mas há, também, amplas extensões rurais, com
suas inúmeras fazendas, pouco conhecidas da Feira de Santana citadina, urbana,
metropolitana.
Os limites do município da Feira de Santana podem ser consultados no endereço eletrônico https://sei.ba.gov.br/site/geoambientais/mapas/pdf/municipal/mapa_sem_descritivo_2910800_1.pdf. Trata-se do site da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, a SEI. Vale à pena conhecer um pouco mais do município, consultando o mapa.
Não sei quem foi que cunhou a expressão, mas que é genial, é: dublê de rico. Fisguei-a pelas mídias sociais da vida. Não de maneira aleatória: alguém a aplicou para definir a indefinível – ou indefinida – classe social feirense que aspira a ser rica, mas à qual – óbvio! – falta o essencial: o numerário.
São, portanto, genericamente, dublês de rico. Propagandeiam,
alardeiam, propalam e até recorrem a uma ostentação fugaz, mas, no fundo, não
fogem à condição de dublês.
O símbolo mais ostensivo dos dublês de rico é, obviamente, o
carrão possante. De preferência, caminhonete, dessas graúdas, capazes de
desbravar picadas.
Quase sempre, o veículo não está quitado e nem sempre saem da
Feira de Santana. Primeiro porque os dublês não dispõem de propriedades rurais;
segundo – e mais importante! – porque não é brincadeira bancar o custo do
combustível. Mas o impacto da caminhonete possante junto à tribo dos dublês não
é negligenciável.
Nos bares da moda – preferencialmente, os que servem picanha,
vinagrete e feijão tropeiro –, o dublê de rico realiza-se, chegando em velocidade
reduzida, examinando os semblantes pelas mesas.
Quem o vê, julga-o procurando alguma feição conhecida. Engano:
no fundo, quer é que o vejam, sobretudo, para glamourizar sua entrée no
ambiente.
Braços afastados do tronco, passos largos, os marmanjos lembram
os caubóis dos velhos filmes de Western.
A diferença é que, aqueles, entravam com suas Colt 45 na cintura, reluzentes. O pobre dublê de rico, coitado, não
pode adentrar o ambiente com sua caminhonete. Mas, mesmo assim, sacode a chave
do carro, reafirmando sua importância.
Abancados – a mesa tem, sempre, que oferecer ampla visão do
entorno, em posição central –, costumam esmerar-se na cordialidade com o
garçom. Afinal, precisam pagar de habitués
da casa.
A mesura – vá lá, empatia – se sujeita a uma regra rígida: é
necessário condescendência, um ar esnobe que nem sempre o dublê de rico
feirense – meio matuto, muito grosseiro – sustenta.
O auge da encenação, porém, acontece quando chega o cardápio.
Mãos sôfregas e olhos ávidos examinam a lista de opções, numa gulodice
concupiscente. Vem, então, o pedido – após as intermináveis consultas de praxe
–, que, sonoro, reverbera junto às mesas próximas e distantes.
No meio tempo, suco e refrigerante para quem não bebe. Cerveja
para os adeptos da cervejinha. Os mais ousados não titubeiam em requisitar
uísque, que entornam com ostensiva ostentação.
Que dizer, então, quando os pratos são servidos? Cessa o
interminável desfilar de vantagens – viagens, propriedades, amizades
importantes – e prevalece o mastigar ruidoso, as garfadas glutonas, o incentivo
incessante – “pega aí, pega aí” – para os convivas em torno.
Entre uma deglutida e nova garfada, as inevitáveis
comparações com pratos similares, noutros restaurantes. Afinal, a ostentação
nunca cessa.
Finda a refeição, devorada a sobremesa e degustado o café,
vem, por fim, a conta. Quando a mesa é ampla, surgem as inevitáveis piadas
sobre quem vai pagar, a generosidade fingida, o acerto no cartão (alguns
tentam, até conseguir, com vários cartões), o comprovante impresso que vai
repousar na carteira.
Nessas ocasiões – em instantes fugazes –, alguns deixam
escapar uma expressão de contrariedade ou preocupação. Nada, porém, que as
inescapáveis gargalhadas não dissimulem.
A sociologia do dublê de rico em mesa de bar... é coisa que rende até tratado acadêmico robusto, dissertação ou tese, com conceitos abstratos e metodologia intrincada. Mas, por enquanto, a coisa tem curso apenas no folclore das mesas de botequim, nas resenhas das redes sociais insociáveis, mas que, em momentos pontuais, reluz com expressões como dublê de rico...