Durante
muito tempo planejei ler “A Guerra do Fim do Mundo”, de Mario Vargas Llosa. Lia
comentários sobre a obra, ouvia elogios e prometia procurá-la na próxima visita
a uma livraria qualquer. Mas, quando entro em livrarias e sebos, uma espécie de
transe me domina e não consigo pensar num volume específico, circulo entre as prateleiras
examinando dorsos, buscando localizar algo por instinto, por uma afinidade meio
mágica.
Pois
foi o que aconteceu cinco ou seis anos atrás. Numa escaldante tarde paulistana
de verão, num sebo, – foi na Praça João Mendes? Na Xavier de Toledo? – circulava
entre prateleiras quando, subitamente, quase esbarro num tamborete. Qual era o
volume que encimava a pilha curta no tamborete? “A Guerra do Fim do Mundo”. Nem
hesitei. Entre milhares de títulos diferentes, justamente o romance do genial escritor
peruano estava ali, à mão.
“A
Guerra do Fim do Mundo” é a versão romantizada da epopeia de Canudos. O texto é
magnífico: quem lê, sente-se na Salvador do final do século XIX, nos ásperos
sertões da vergonhosa carnificina. Impressionante como um estrangeiro, nada íntimo
da Bahia e de suas singularidades, conseguiu produzir obra tão grandiosa.
Jorge
Amado, em “Navegação de Cabotagem”, lembra que desaconselhou Vargas Llosa a tentar
a empreitada. Tempos depois, confessou-se surpreso com a capacidade do escritor
peruano de imergir na Bahia, de captar os sentidos daquela epopeia. Com todo o
respeito aos baianos e a quem produziu literatura sobre a Bahia, julgo “A
Guerra do Fim do Mundo” livro único, ímpar, insuperável.
Mas
por que essas lembranças despropositadas? É que, num Carnaval ardente e
silencioso da Feira de Santana, li “A Guerra do Fim do Mundo”. Leitura febril,
à noite sonhava com o livro e suas personagens. Particularmente encantou-me o
jornalista míope, que acompanhou a epopeia sem os seus óculos e que, por isso, “viveu
mas não viu” as batalhas, o massacre.
Neste Carnaval que finda, não
engatei nenhuma leitura mágica e os dias de folia devem confinar-se naqueles
escaninhos da memória que ninguém perscruta. Ficará, no máximo, a memória do
afã com que as pessoas se dedicaram ao feriadão, nas praias ou nos circuitos da
folia. Resquício, talvez, da apreensão e do confinamento da pandemia. Lembra as
personagens de “A Peste”, de Albert Camus. Mas é melhor parar por aqui, porque
já há literatura demais nesta prosa torta...
-
A feirinha está devagar hoje. É o Carnaval...
O
comentário – quase um bocejo – foi lançando por uma feirante ali na feirinha
do Sobradinho neste domingo de Carnaval. Havia, de fato, pouca gente. Era possível
circular com liberdade entre as barracas, pisando o asfalto umedecido pelas
chuvas.
Havia,
também, escassez de produtos: umas poucas pencas de banana numa barraca,
hortaliças minguadas noutra, tomates, batatas e cebolas sem aquela profusão
habitual. Enfadados, os feirantes pareciam contar os minutos para encerrar a
jornada. No galpão de carnes, linguiça, fígado bovino, refrigeradores vazios e
a mesma pasmaceira.
Naquele
trecho agitado que abriga os boxes que vendem comida e bebida havia mais
movimento, mas, mesmo assim, bem abaixo da frequência habitual. Sob o céu
cinzento e o vento úmido a cerveja empolgava pouco. Espalhada pelas mesas coloridas,
a clientela mastigava as carnes que as churrasqueiras assavam.
No
entorno, pouca gente e, pelas ruas próximas, um silêncio incomum, típico da
Feira de Santana de outros tempos. Quem ficou na cidade circulou pouco no domingo,
talvez intimidado pelas chuvas intermitentes, pelo céu de nuvens cinzentas, de
tons paulistanos.
À
noite prevalece o silêncio, quebrado só pelos roncos de motores distantes, por
um grilo persistente. Nuvens esbranquiçadas deslizam na orla do céu, opacas,
contrastando com as tristonhas luzes citadinas. Ânimo mesmo só na transmissão do
Carnaval nos aparelhos de tevê.
A noite do domingo de
Carnaval é a mais estranha das noites de domingo na Feira de Santana. Não tem
aquela melancolia típica dos domingos comuns porque, na segunda-feira, é
feriado; mas, mesmo assim, há na atmosfera aquela tensão mercantil que aguarda,
com ansiedade, a Quarta-Feira de Cinzas, a reabertura do comércio e o começo do
ano de fato...
2024 é ano de eleição municipal. Época boa para perguntar a quem pretende chegar à prefeitura e à vereança o que pretende fazer, quais são os planos, o que vai se mudar na vida da cidade. Muitos temas estão postos aí, urgentes. Um dos que exige solução há mais tempo é o Centro de Abastecimento da Feira de Santana. O que se pretende fazer com o emblemático entreposto?
Lixo, insegurança, desorganização, más condições de conservação, problemas de acesso e no trânsito no entorno, tudo isso vem sendo exaustivamente mencionado há tempos. A atenta imprensa feirense sempre toca no assunto, registrando as reclamações dos freqüentadores do entreposto.
A única novidade dos últimos anos é que acoplaram ao Centro de Abastecimento um problema adicional. Trata-se do polêmico shopping popular, que vive interminável litígio entre concessionários e administradores da parceria público-privada. Para a construção do empreendimento, que segue apenas parcialmente ocupado, o Centro de Abastecimento perdeu boa parte de sua área.
Aquela região, há tempos, exige uma intervenção abrangente, organizada, competente. Contígua está a Praça do Tropeiro, muito degradada. Pena quem precisa se deslocar por aquelas cercanias, a pé ou recorrendo ao problemático transporte público. Um projeto arrojado e – por quê não? – grandioso pode resgatar todo o entorno, tornando-o dinâmico e economicamente atrativo.
Aqui na Feira de Santana sempre se importam, festivamente, modelos, referências de outras cidades. O melhor caminho certamente é se inspirar não nas intervenções realizadas em outros lugares, mas na competência técnica de suas equipes. Salvador – aqui do lado! – é uma referência interessante em gestão.
Uma mudança do gênero, porém, exige reestruturação administrativa, atração e investimento em pessoal técnico – concursos públicos são excelente caminho -, expertise em captação de recursos, adoção de modernos modelos de gestão e por aí vai. Enfim, modernização. Dá um excelente capítulo num plano de governo.
Mas o Carnaval está aí às portas, a Feira de Santana vai se esvaziando, o povo tomando o rumo dos circuitos e das praias, não é o momento de ficar falando dessas coisas. Isso é pra mais adiante, é necessário esperar pelo menos o fim do Carnaval...
Serrinha era uma cidade bem acanhada em meados dos anos 1970. Imagino que boa parte da população residia na zona rural. Consultando os dados do Censo de 1980, constata-se que havia, por lá, 57,4 mil moradores distribuídos por 10,4 mil domicílios. A cidade era quieta e silenciosa e ruas e praças desertas emanavam uma paz difícil de descrever.
No fim da Rua Barão de Cotegipe ficava uma estação ferroviária e, quando os trens passavam, havia alguma animação. Duas cores predominavam nesses momentos: o cinza escuro da fumaça malcheirosa e um vermelho burocrático, melancólico, que coloria tristemente os lombos dos trens. Em volta da estação eucaliptos esguios que, na meninice, eu julgava imensos, descomunais.
Pacata, a cidade raramente se agitava. Numa data incerta, uma pequena fábrica se incendiou. Lembro dos adultos comentando e – notícia tremenda! – um caminhão do Corpo de Bombeiros deslocou-se desde Salvador para intervir. Não adiantou. Tudo se perdeu com o fogo, comentavam os mais velhos.
Os tempos eram tão outros que até Carnaval havia. Pois foi lá, bem miúdo ainda, que mantive o primeiro contato com a folia momesca. Salvo engano, a festa acontecia sob os oitizeiros da Praça Luís Nogueira. Presumo que eram oitizeiros, árvores frondosas que, sertão afora, produzem excelentes sombras pelas praças. Mas é só um palpite.
Pois bem: as primeiras sensações legadas pelo Carnaval foram péssimas. Havia muita gente, agitada, cantando, dançando, afugentando a quietude da cidade acanhada. O barulho das músicas e dos gritos era assustador, feria os ouvidos de quem vivia os longos silêncios da roça.
Até aí tudo bem: pior foi quando uma figura fantasiada e mascarada – não sei se homem ou mulher – acenou para mim lá do alto do trio. Imagino que era um trio, desses menores, comuns naqueles tempos. Senti um medo terrível da criatura mascarada, do veículo barulhento se locomovendo. O medo me paralisou. Fiquei de baixo observando os acenos que não cessavam.
- Está acenando para você! – Advertiu uma das minhas irmãs, ralhando-me pela indelicadeza.
O temor da figura mascarada, o barulho que feria os ouvidos, a multidão gargalhando e dançando, tudo aquilo despertou uma ojeriza à folia momesca que atravessou a infância. Mudamos de cidade e, anos depois, o Carnaval de Serrinha acabou.
Todo ano, quando começa essa agitação carnavalesca que mobiliza a Bahia, recordo o episódio pitoresco, engraçado até.
E o que estava seco, ressequido, tórrido, ganhou inesperados tons verdes há alguns dias já. Tudo por conta da chuva que caiu em grandes volumes aqui na Feira de Santana e região. Lagoas e reservatórios de água encheram-se, afastando um pouco o drama da seca que assolava o sertanejo.
Tem-se, agora, a chamada “seca verde”: não há pastagem para animais ou lavouras, mas tudo se coloriu de verde, porque até as garoas tem o condão de revigorar a vegetação sertaneja. Quem é de fora admira-se, duvidoso da estiagem, que não apresenta aquele clássico aspecto de desolação.
As chuvas recentes, porém, já animam os sertanejos. Afinal, os reservatórios se encheram com as impressionantes precipitações de dias atrás. Vira e mexe, segue caindo água, mesmo sem aqueles volumes caudalosos, que inclusive produziram estragos.
A animação do sertanejo é subjetiva, impregnada de uma fé calcada na sabedoria. Trovoadas agora são auspiciosas de inverno bom, chuvoso, farto. Sempre foi assim e a crença permanece, mesmo com os desarranjos decorrentes das mudanças climáticas.
Atravessaram-se meses de temperaturas elevadíssimas. Mas agora há mais umidade e até menos calor, mesmo sendo verão. Será o fim do famigerado El Niño se antecipando? É uma pergunta boa para ser feita aos especialistas.
O fato é que quem é da roça está mais animado. Vê-se diante da perspectiva – mais uma vez! – de findar mais uma severa estiagem. Estas não têm sido poucas e tem sido intensas.
As expectativas, por aqui, se voltam para as chuvas que, nesta porção fronteiriça com o Recôncavo, costumam cair a partir de abril e culminam com o inverno mais à frente. Em 19 de março celebra-se São José. A data é um marco climático nos sertões e, se as chuvas continuarem, rogos e preces nem precisarão ser tão intensos este ano.