Foi no meio da tarde de terça-feira (15). Na esquina da Senhor dos Passos com a Getúlio Vargas, bem do lado da igreja, os autofalantes – instalados no centro da cidade para embalar as compras neste período natalino – começaram a tocar Girls Just Want To Have Fun, grande sucesso dos anos 1980 na voz da cantora norte-americana Cyndi Lauper. Ia andando e a canção vibrante – nostálgica para quem viveu aqueles anos – soava, familiar, resgatando remotas recordações.
Nem é preciso mencionar o calor que fazia sob o céu azul pálido, esbranquiçado. Não soprava nenhuma brisa e as copas dos oitis no estacionamento da prefeitura permaneciam quase imóveis sob aquele bafo ardente. Nem os pardais piavam e, no ar, havia uma luminosidade faiscante. Naquele cenário abrasador até os roncos dos motores eram menos ferozes; e apitos longínquos soavam frágeis, exangues.
Talvez por isso a canção viva, pulsante, destoava tanto daquela tarde incandescente, sufocante. Enquanto a voz de Cyndi Lauper irradiava energia, o feirense empenhava-se para resguardar-se do sol, disputando as sombras raras. Não notei aquele ir-e-vir agitado, típico das vésperas de Natal. Nem o vozerio, os pregões, o barulho característico desta época tumultuada. Isso explica – quem sabe – porque a canção, alegre, parecia imprópria, despropositada.
Na televisão, as fórmulas fáceis da fraternidade de mercado são as mesmas dos anos anteriores. Os apelos ao consumo, aquela alegria teatral, os calculados sentimentos cristãos, nada mudou. Mas nas ruas percebe-se um silêncio pouco usual. O feirense – e o brasileiro, óbvio – avexam-se com os riscos da Covid-19 – que voltou a crescer e a matar – e com as agruras econômicas decorrentes da pandemia. Isso explica o silêncio e a introspecção, incomuns no baiano.
Daí que Girls Just Want To Have Fun soou até despropositada nos autofalantes. Lembrei, então, de uma circunstância semelhante em que a ouvi, há muitos anos, em Itaberaba, lá na Chapada Diamantina. Alguém a ouvia alto – mas a muita distância – e os sons chegavam melancólicos, distorcidos. Da janela do hotel, via os paralelepípedos luzidios do calçamento, a luz baça dos postes, o silêncio, a solidão e a noite profunda no céu sem estrelas. Imenso o contraste entre a canção e aquele cenário.
Na terça-feira, apesar da luz do sol – a luminosidade destes dias que antecedem o verão tem sido magnífica – veio a mesma sensação. Talvez seja a melancolia típica do Natal, a inquietação em relação ao futuro. Para quem sobreviver a esses tempos tormentosos, tudo vai acabar passando um dia. Mas que a travessia está sendo difícil, isso está...
É bizarro o quiproquó envolvendo a vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Ocupado por um general lerdo, o Ministério da Saúde retarda decisões, se omite, polemiza, arrota valentia, mas não encaminha soluções. Enquanto vários países já se preparam para começar a vacinação, lá no Planalto Central apenas se rascunham planos vagos. O pior é que nada disso surpreende os mais atentos. A vacinação é uma opção pela vida. E o Brasil, em 2018, selou nas urnas um pacto com a morte.
Portanto, os dois últimos anos, por aqui, foram de exaltação à morte, em suas múltiplas dimensões. As ostensivas medidas de rearmamento da população são a face mais visível. Mas há outras, muito claras. É o caso do “excludente de ilicitude”, aquela carta branca para as polícias apertarem o gatilho sem empecilhos. A tentativa de taxar livros e isentar de impostos a importação de armas bem que resumiria, sinteticamente, essa época tormentosa.
A destruição da Amazônia e do Pantanal também são manifestações desta mesma pulsão pela morte. As imagens de animais chamuscados, queimados, – até mesmo calcinados pelo fogo incontrolável – horrorizaram aqueles sintonizados com a vida. Os cultores da morte, por outro lado, sustentaram um silêncio deliciado. Mas não faltaram os mais celerados que veem na catástrofe uma vereda aberta para o progresso. Qual o preço desse progresso? A sustentabilidade do planeta no médio prazo.
A morte pulsa também na opção do desgoverno pelos milionários, pelos endinheirados. Para os amigos prósperos, menos impostos, manutenção dos subsídios, menos encargos trabalhistas. E para os pobres e trabalhadores? Mais carestia, menos direitos, menos serviços públicos essenciais, mais violência e mais exclusão. Difícil acreditar que uma sociedade pode prosperar quando se aposta em mais desigualdade, no aprofundamento das iniquidades sociais.
O que é que orientou essa opção coletiva pela morte, por Tanatos? A alienação religiosa é uma explicação – uma vida insípida associada a alucinações milenaristas –, mas não se esgota aí. A crise econômica, por exemplo, atropelou muitos que, ressentidos, viram na aventura de Jair Bolsonaro, o “mito”, não uma solução, mas uma oportunidade para escangalhar tudo de uma vez. Sua intuição não os enganou. Na fauna que legitimou esse pesadelo há também ingênuos, ignorantes, distraídos, incautos. Enfim, é variada.
O que une muitos deles é a ojeriza a argumentos racionais. Nada os dissuade em sua marcha insana. Para eles, o “mito” é uma espécie de messias tupiniquim, a terra é plana e a Covid-19 é uma conspiração chinesa para dominar o mundo. Isso não surpreende. A racionalidade é um atributo da vida, não da morte. Quem almeja a morte – ainda que de maneira inconsciente – jamais vai render-se aos argumentos, próprios do mundo sensível das ideias.
Não adianta, portanto, discutir, argumentar. A cisão na sociedade brasileira vai muito além das flâmulas ideológicas, das desavenças políticas. Há um antagonismo entre a vida – que é o impulso primordial da maioria – e a devoção à morte. Mas não a morte individual, aquela da opção suicida; e sim aquela milenarista, religiosa, que só se contenta com o extermínio coletivo.
Muitos, coitados, não tiveram a oportunidade de desenvolver seu potencial humano. E aí enxergam a vida como um fardo, um peso insuportável. Outros não conseguem enxergar-se além do circuito da produção e do consumo. Prosaicamente, do ganhar dinheiro e do gastar dinheiro. É algo vazio que, muitas vezes, conduz ao desespero e à expectativa de soluções “milagrosas”. Daí, talvez, o mergulho no Tanatos, na opção pela morte.
É óbvio que nem todo mundo que votou no “mito” opera nessa sintonia do Tanatos. Mas aqueles que o exaltam como redentor e o cultuam a cada opção pela morte compõem essa fauna, obviamente. Sua trincheira, agora, é o embate contra a vacinação que vai salvar a humanidade da Covid-19.
Sabendo-se flutuando no abismo, os mais sensatos se indagam quando esse pesadelo vai ter fim. E aguardam, ansiosos, a oportunidade de se verem, mais uma vez, imersos na vida...
O rapaz de cabelos e olhos claros entrou e sentou bem defronte a mim. O trem estava vazio – era metade de uma manhã cinzenta de fim de inverno e o sol e as nuvens alternavam-se no céu – e, ali na Estação do Mercado, havia uma quietude profanada por poucos passageiros apressados. Lá de fora – distantes – chegavam sons distorcidos, indefiníveis. Mas no vagão prevalecia um silêncio tênue, que uma tosse persistente, passos abafados ou o incessante vasculhar de sacolas fragmentavam. Então, depois do aviso sonoro, as portas se fecharam e o trem avançou em direção a Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre.
Entretive-me tentando enxergar o Guaíba – eriçado com o vento daquele fim de inverno e seus múltiplos tons, ora cor de aço, ora acobreados –meio encoberto pela vegetação e pelas construções cinzentas. À medida que as estações foram se sucedendo – Rodoviária, São Pedro, Farrapos – começou a subir mais gente. Subiam também os ambulantes que ofereciam suas bugigangas.
Do lado oposto ao Guaíba vê-se o centro de Porto Alegre num extenso, mas suave aclive, com suas construções solenes, sisudas, de cores neutras. Depois da Estação Aeroporto a paisagem vai assumindo uma feição desinteressante, típica das grandes metrópoles. Viadutos, vias expressas, fábricas, galpões comerciais ociosos – malconservados – vão se sucedendo, encardidos pela fumaça que o vento nem sempre dispersa.
Há também muita pobreza, ostensiva, a alguns metros das linhas férreas. Crianças esfarrapadas brincando no chão úmido, sujeitos ociosos com agasalhos surrados, mulheres lavando roupa, imersas nas tarefas domésticas. Com músculos retesados, alguns desgraçados conduziam monumentais volumes de material reciclável – papelão, latas, hastes metálicas – para defender alguns trocados.
A paisagem repetitiva, monótona, cinzenta, desatava a atenção. Então entretive-me examinando os passageiros. Gente modesta, que se dedicava às suas tarefas corriqueiras. Só então notei que o rapaz mencionado no começo do texto tentava concentrar-se na leitura de um livro. Não foi difícil ler o título: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. O autor é o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, guru da trupe que ocupa Brasília.
Bem vestido, tinha jeito de estudante. Conduzia uma mochila de grife, que acomodava no colo. Interrompia a leitura com os solavancos do vagão, com o incessante sobe-e-desce de passageiros, com os pregões dos ambulantes que suplicavam a atenção dos passageiros. Ou seja: quase não lia. Mas examinava furtivamente as pessoas ao redor. Não era um olhar discreto, mas um exame amedrontado. Havia naqueles incessantes golpes de olhos um receio de ser flagrado, de ser pilhado observando.
Boa parte dos que se aventuram vendendo aquelas quinquilharias – aparelhos para descascar verdura, carregador de celular, fones de ouvido – são negros e labutam com valises que abrigam a mercadoria. Naquele horário moviam-se tranquilos, pois os passageiros eram raros. O rapaz media-os de soslaio, com um olhar esquisito. Ódio? Não se via aquela centelha característica. Temor? Não havia hesitação. O que havia – parecia – era um imenso pasmo. Como quem se depara com extraterrestres.
Não conheço – nem pretendo conhecer – o conteúdo do livro, mas enveredei por algumas especulações, enquanto não findavam os 42 quilômetros daquela viagem. Notei que o rapaz estava na metade da leitura. Será que o pasmo se devia a essa condição intermediária? Não era mais idiota, porque decifrava o livro, mas não concluíra leitura e a metamorfose e, portanto, ainda devia ser meio idiota. Será que idiotas pela metade exibem olhar aparvalhado, perdido, feições estupefatas?
Lá adiante – imagino que no município de Sapucaia do Sul, mas a memória é traiçoeira – ele desceu. Daí para a frente as estações se sucediam – São Leopoldo, Rio dos Sinos, Santo Afonso e, finalmente, Novo Hamburgo ficaram na lembrança –, com a regularidade dos trens que sacolejam, rangem, levando gente. O enigma do sujeito de olhar esquisito perseguia-me, mesmo vendo o luminoso Rio dos Sinos e a bela silhueta de São Leopoldo. Há um estado de idiotice que se desfaz com a leitura do livro, como uma revelação, um transe religioso? Não encontrei resposta.
Em Novo Hamburgo até acompanhei uma celebração católica, ao meio-dia, na bonita Catedral da cidade. Um padre avermelhado, muito branco, pregava com voz mansa. Mesmo assim, saí da igreja sob o frio suave daquele começo de tarde sem as respostas para o tormentoso enigma...