Mais uma temporada se aproxima para o futebol baiano. Com ela, reacendem-se as esperanças das torcidas dos times do interior. O Fluminense de Feira – com diretoria nova, já que o ex-presidente renunciou – ostenta o mesmo otimismo. Será que o time, finalmente, vai conseguir ser campeão baiano? Quem frequenta as arquibancadas do Joia da Princesa já ouviu falar da famosa “caveira de burro” enterrada no estádio. Reza a crença que, quando ela for localizada, o time vai deslanchar, ganhar título adoidado. Todo jogo alguém comenta isso.
A crendice não é nova, nem recente. No remoto ano de 1979 o Touro do Sertão ganhou uma pitoresca série de notas nas páginas do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. A primeira foi na edição de 16 de outubro. Ao invés da famosa caveira, a personagem foi um bode.
O título foi curioso: “Bode é atração do Flu de Feira”. A matéria também: “O Fluminense de Feira de Santana conseguiu domingo sua primeira vitória no Campeonato Nacional ao derrotar o Atlético de Goiás por 1 a 0. O sucesso da equipe, no entanto, foi creditado ao bode ‘Napi’ que, pela primeira vez, deu uma volta olímpica antes de o jogo começar e, em meio à confusão, acabou caindo junto à bandeira de corner”.
O melhor veio depois: “Desse ponto saiu o cruzamento que resultou no único gol da partida”. A apoteose se deu após a partida, conforme o mesmo Jornal do Brasil: “Depois do jogo, os torcedores invadiram o campo para comemorar o resultado e, ao invés de carregarem técnicos, dirigentes e jogadores, levantaram nos braços o bode ‘Napi’ vestido com as cores verde, vermelho e branco”.
Aqueles eram tempos mais irreverentes, apesar da ditadura militar que asfixiava o País. Seja por crendice ou por uma esperta jogada de marketing, o fato é que “Napi” foi encomendado como parte de um “trabalho”. É o que informa a nota do JB: “A presença de ‘Napi’ (...) fez parte de um trabalho encomendado pelos torcedores do Fluminense para melhorar a participação do clube no Nacional. Com o bom resultado obtido, todos acreditam agora que o azar do time acabou”.
Não foi bem assim: na rodada seguinte, “Napi” até deu sorte contra o Itumbiara-GO (1 a 0) e impediu a derrota contra o Mixto (0 a 0). Ambas as partidas foram no Joia da Princesa. Mas depois o time desandou contra o Itabuna (0 a 1). Naquela partida – numa nova nota – o Jornal do Brasil informa que a torcida do Flu de Feira decidiu não levar o animal para Itabuna, porque ficou “temerosa de uma represália”.
Depois, mais uma vitória contra o Brasília e empate com o Gama. No primeiro jogo, com a presença de “Napi” – o JB registrou também –, o Touro venceu por 1 a 0. Isso foi no Joia da Princesa. O empate com o Gama foi em Brasília e o resultado não foi suficiente para levar a equipe à fase seguinte. Desde então, o Touro do Sertão nunca mais disputou a principal divisão do futebol brasileiro.
Seja por crença, folclore ou marketing – só o pitoresco atrai a atenção da imprensa do Sudeste até hoje – o fato é que o Touro do Sertão ganhou espaço num dos principais jornais do País. Atualmente – nessa época de iracundo fundamentalismo religioso – irreverência do gênero se tornou mais rara e, inclusive, pode atrair a cólera dos intolerantes de plantão...
– ... está morrendo muito idoso com a Covid-19...
– É bom. Assim abre lugar pros mais jovens. Renova...
O diálogo surreal ocorreu num boteco na Zona Sul paulistana. Foi num final de tarde de verão, sob uma luz tristíssima, cinzenta. Na orla do céu, o clarão dos relâmpagos anunciava uma trovoada que não chegou. Na rua, os faróis dos automóveis feriam a semiobscuridade do lusco-fusco.
O primeiro interlocutor era idoso – escassos fios alvos emolduravam a cabeça calva – e esvaziava uma garrafa de cerveja. Provavelmente a saideira: o outro, jovem, empilhava mesas, apressado em sua tarefa. Lá, dentro, uma tabuleta indicava os pratos-feitos servidos no botequim. Um cheiro denso de gordura impregnava o ambiente, irradiava-se para a calçada.
Será que a frase cruel era só para afugentar o cliente retardatário? Impossível saber. Mas o desprezo pela vida, no Brasil, só surpreende os mais desatentos. Talvez o sujeito absorvido por aquela tarefa mesquinha, sem futuro – deve embolsar um salário irrisório – julgue que, matando os mais velhos, sobre mais dinheiro para os mais jovens. Ou, quem sabe, almeje só uma vingança sórdida, gratuita, já que vive uma vida sem expectativas.
O mais desconcertante é que muita gente não despreza só a vida dos outros. Afinal, o que pensa quem se entope de cloroquina e sai por aí, sem máscara e sem receio das aglomerações? Devem atribuir pouco valor à própria existência. A cena é muito comum na capital paulista. Lá, muitos se acotovelam, desassombrados, em bares e festas. Contrariando o clichê habitual, não são só os pobres com seus paredões periféricos, mas também a classe média alta com suas festinhas privê.
Aqui na Feira de Santana, pelo jeito, também não faltam destemidos. Será que também se entopem de cloroquina e saem por aí julgando-se invulneráveis? Pode ser. Alguns logradouros da cidade oferecem fartas amostras da fauna. É o caso da Rua de Aurora e adjacências, com seu intenso comércio de autopeças e acessórios. Por ali, poucos usam máscaras. Será que o afã de fazer dinheiro os distrai? Ou julgam a pandemia modismo? São duas explicações plausíveis.
Não é difícil traçar o perfil dos mais recalcitrantes. Muita gente jovem arrisca-se, indiferente à Covid-19. Mas boa parte é de meia-idade, com baixa instrução e ocupada em funções precárias. Trabalham sem máscara, mas também conversam, aguardam clientes ou se deslocam sem maiores cuidados.
No Centro de Abastecimento não é diferente. Feirantes e consumidores arriscam-se como se não houvesse amanhã. Até o perfil é similar. Imagino que, pouco escolarizada, essa gente enfrenta dificuldades para entender o que é um vírus e as formas de transmissão. Para eles, é tudo misterioso, enigmático. Daí a desconfiança que – não raro – é terreno fértil para as mais insanas teorias conspiratórias.
O desalentador é que o cenário vai se arrastar por muito tempo ainda. Negacionista, o governo da morte não investiu em vacinas e a imunização da população, ao que tudo indica, vai prosseguir a conta-gotas. Isso se a nova cepa oriunda do Amazonas não ampliar a desgraça, o que muitos estudiosos já cogitam.
O fato é que 2021 vai ser mais um longo e angustiante ano para o brasileiro que preza pela própria vida e se cuida. Os demais flertam com a morte. E os acólitos de Jair Bolsonaro, o “mito”? Ah, esses permanecem em êxtase, deleitando-se num mar de leite condensado...
Sempre fui fã do falecido comentarista esportivo Armando Oliveira. Adolescente, acompanhava as grandes vitórias do Bahia – naqueles tempos o Tricolor de Aço reservava muitas alegrias para sua torcida – atento aos seus comentários sóbrios, precisos e elegantes. Quem ouvia suas análises ficava com a impressão de acompanhar o jogo no estádio, vendo tudo, tamanha era a sua capacidade de traduzir o que acontecia no gramado. Não foi à toa que se tornou um dos profissionais da crônica esportiva mais prestigiados do Brasil.
Armando Oliveira também escreveu crônicas para os jornais de Salvador. Seu talento deixou marcas nas páginas do extinto Jornal da Bahia, mas também em A Tarde, no Correio e, sobretudo, na Tribuna da Bahia. Após a sua morte, parte dos seus textos foi reunida em um livro, que o homenageou postumamente. Num sebo soteropolitano, tive acesso a um exemplar.
O cronista que labutava nas redações não se limitava ao futebol. Muito pelo contrário: trafegava pelas mais diversas dimensões da vida e dos fatos e a política era tema que sempre abordava. Nos anos 1980, por exemplo, escreveu excelentes textos sobre a democracia e o restabelecimento das liberdades no país. Os políticos, obviamente, não escaparam de suas irônicas observações.
Um deles foi o ex-presidente José Sarney. O trecho seguinte refere-se ao político maranhense. Mas parece mais aplicável aos mandatários dos dias atuais. Sinal de que avançamos pouco desde então:
“O homem é a síntese das nossas imperfeições e ninguém gosta de vê-las refletidas no exercício do poder”, anotou, em “Escarrado e cuspido”, texto que começou feliz já no título. Adiante tem mais: “Oportunista, medíocre, bajulador, sua carreira foi construída a golpes de agachamento”.
O melhor, porém, vem mais à frente. É bom lembrar que o texto se refere ao governo Sarney, que expirou há três décadas, não aos dias atuais:
“No exercício da administração pública, um exemplar perfeito (...) Cupinchas e familiares prosperando vertiginosamente, adversários tratados a pão sem água, muita mordomia, ‘moral de jegue’ para consumo externo, enfim, a lesma lerda que a gente conhece de antigos Carnavais”.
E não para por aí:
“Julga-se um notável estadista, adora fazer presepada, viajar às custas dos outros (...) prometer sem a mínima intenção de cumprir, passar a perna no próximo, puxar o saco dos milicos, enfim, comporta-se como o brasileiro de estatura mediana”.
E arremata, profético:
“Enquanto não adquirirmos uma melhor aparência cívica, pega mal jogar a culpa no espelho”.
Falecido em 2005, Armando Oliveira parecia estar descrevendo o triste Brasil dos dias pandêmicos que se arrastam, angustiantes. Pior: Sarney, pelo menos, tinha verniz civilizado, até se aventurava pela literatura com seu “Marimbondos de Fogo”. Os que estão aí aboletados no poder, com seu projeto obscurantista, tem ojeriza à leitura, aos livros, à cultura de uma forma abrangente. E a tudo que não seja a morte.
A crônica desperta no leitor a recordação de que o Brasil sempre foi isto que se vê. No passado, até teve seus momentos de esperança – fugazes, efêmeros, até ingênuos – mas, agora, mergulhado no mesmo lodaçal de equívocos de desde sempre, torna toda esperança pueril. Por enquanto, tudo indica que temos um longo passado pela frente.
Mas, ao menos, vale a pena ler as crônicas de Armando Oliveira, craque do microfone e também da máquina de escrever...
Tempos atrás, numa dessas despretensiosas cervejadas de uma ensolarada tarde de sábado, um amigo à mesa respirou fundo e cultivou um angustiante silêncio por alguns instantes. Bêbado? Não consumira tanto, era resistente ao álcool. Mas o olhar perdido, lançado sobre a calçada encardida, inquietava. Até ali o papo fluíra, banal. Não se incursionara por nenhuma delicada questão familiar e não se bebera o suficiente para enveredar por quaisquer especulações existenciais. Eu aguardava, entretido com a barulhenta celebração do sábado nas mesas próximas.
– Dia desses, mexendo nuns papeis, encontrei uma fotografia. Coisa antiga, dos tempos de movimento estudantil... eu lá, junto com a galera...
E aí abriu muito os olhos, mergulhando naquelas antigas recordações. Depois, descreveu a fotografia: oito ou dez estudantes, sorrindo, abraçados, naquelas aglomerações comuns às micaretas. Coisa antiga: a micareta ainda era na Getúlio Vargas e o registro ocorrera defronte a um dos barracões universitários da Uefs. Todo mundo mais jovem, mais magro, mais cabeludo.
– O pior de tudo foi a sensação de encontrar comigo mesmo...
A fotografia acionou o gatilho da saudade. Pela descrição vívida, as músicas, as luzes, as vozes, os gritos, as danças – até o sabor da cerveja – tudo voltou num turbilhão, borbulhando. O silêncio da noite e o inesperado do achado impulsionaram as sensações, revelou. Mas o pior de tudo nem foi isso: foi o sentimento de se encontrar, inesperadamente, consigo mesmo.
– Eu lá e eu aqui. Mas dois estranhos. O do passado, aprisionado na fotografia, mas muito vivo na minha memória. E eu mesmo, me reencontrando...
Que dizer? Aguardei. Novo silêncio se estendeu por alguns instantes. Na tevê do bar, um jogo qualquer de uma competição europeia. Acabrunhado, confessou que o encontro consigo mesmo fora constrangedor. Na meia-idade, mais gordo, com algumas rugas e jeito de burguês próspero, fustigava o rapaz sonhador, carbonário nas assembleias estudantis, farrista, mulherengo. E este, implacável, fustigava-o de volta.
As altas ambições do rapaz envergonhavam-no. Não disse quais eram, nem eu perguntei. Enquanto reforçava a cerveja no copo, cogitei. Talvez o desenvolvimento de uma grande teoria, a realização de uma obra marcante, uma fulgurante trajetória acadêmica. Quem sabe dinheiro, poder, mulheres, viagens, um patrimônio invejável. Ou um Brasil mais justo, menos desigual. Leque amplo, mas quase todas as ilusões juvenis encaixam-se nele.
Curioso foi ele imaginar que o rapaz da foto também se envergonhava. Quem era ele desde aquela fotografia? Um sujeito com uma trajetória medíocre. Talvez pessoalmente ele não fosse medíocre, mas a trajetória era, ponderava. Formara-se, ingressara no serviço público, casara, tivera um par de filhos, financiara casa e carro. Uma vida comum. As grandes ambições ficaram pelo caminho e isto parecia que o martirizava. Pelo menos naquela tarde em que os tons do crepúsculo já se anunciavam. Requisitou mais uma cerveja com um gesto enfático.
– Acho saudáveis as grandes ambições da juventude. Mas depois a gente se ajusta...
Arrisquei, sem muita convicção. O papo ameaçava enveredar pela busca do sentido maior da vida. A tarde caía e, nas mesas próximas, havia movimentação. Um grupo barulhento ajeitava-se para acompanhar o jogo do Flamengo. Os olhos do colega cintilaram, era flamenguista. Aos poucos as tristezas do reencontro consigo mesmo foram se dissipando. O jogo tenso, equilibrado, prendia sua atenção.
O colega seguiu sua trajetória e não o vi mais desde o começo da pandemia. Mas a quantidade de cerveja não diluiu as lembranças daquela conversa. E, às vezes, penso em como pode ser dilacerante uma fotografia perdida no meio de papeis antigos...
O 21 de dezembro foi um dia movimentado em 2020. Logo cedo, começou oficialmente o verão, precisamente às 7h02. É comum o verão começar nesta data. Aliás, raramente o verão chega no dia 22. Mas a agitação não se esgotou por aí. Mais tarde, começou a aguardada Era de Aquário. Pelo que li, exatamente às 11h11. Entendo pouco destas questões astrológicas, nem horóscopo acompanho. Mas ouço falar da badalada Era de Aquário – com todas as suas prometidas mudanças energéticas – há décadas.
Mais tarde, no começo da noite, Júpiter e Saturno se alinharam no céu. À distância, parecia que quase se mesclavam, tamanha a aproximação. O maior – Júpiter – luzidio, irradiando sua luz esbranquiçada, metálica. Já Saturno, opaco, secundava-o. Parecia que iam se fundir, tamanha a sensação de proximidade no limpo céu feirense. Vi tudo isso a olho nu, sem a necessidade de recorrer a qualquer equipamento.
Pelo que li, o momento adequado de observar o fenômeno ocorreu entre 18 e 19 horas. Foi imensa a felicidade do feirense que aprecia o céu, a noite e os astros na amplidão. Afinal, logo depois, nuvens suaves povoaram o céu e encobriram até mesmo a lua. Mais tarde, crescente, ela reapareceu com sua luz leitosa, mas Júpiter e Saturno sumiram. Aqui ou ali insinuava-se uma ou outra estrela, cintilando timidamente.
Engraçado é que, nos últimos dias, vinha observando a impressionante aproximação entre os dois astros. Domingo (20) até fiquei espantado, estavam muito juntos. Vasculhando a memória, não lembrei de já tê-los visto assim. Pois é: descobri depois que o fenômeno é muito raro. Tanto alinhamento tinha sido visto pela última vez na Idade Média. Antes, foi até mesmo registrado na Bíblia como marco do nascimento de Jesus Cristo: a celebrada “Estrela de Belém”.
Na minha profunda ignorância astrológica, presumo que este alinhamento planetário é o que viabiliza, em parte, a famosa Era de Aquário, já mencionada. Poderia discorrer sobre o tema, mas fiquei com preguiça de investir em mais pesquisas na Internet. Efeito, talvez, do final do ano, das férias que se aproximam.
Nos últimos dias, dediquei muito tempo ao céu feirense à noite. Estava irretocável, sem nuvens. Dele, vinha um silêncio e uma paz profundos, indescritíveis. Há aí, quem sabe, a energia lúdica do verão. É que o céu noturno nesta estação é único. As pessoas também estão diferentes, mais animadas com a alta estação, com as férias, com a perspectiva do recomeço. Num ano de pandemia, então, nem se fala.
Noto que a Feira de Santana já se esvaziou. Mesmo neste ano atípico, muitos já viajaram. Outros tantos devem fazer o mesmo nos próximos dias. Em anos normais, o movimento só recomeça em fevereiro. É possível que o mesmo ocorra no 2021 que nasce sob a expectativa do começo da vacinação, mesmo com os delírios obscurantistas em voga.
Então, é bom desejar aos leitores, desde já, Boas Festas. E que, em 2021, retome-se a trilha da normalidade. Mas de uma normalidade sem ódio, com democracia, com ciência, alicerçada no conhecimento e na sabedoria. E também de paz. Não só dessa paz que se limita à ausência de violência, mas de uma paz profunda, intensa, interna, que emerge do ser e preenche todas as dimensões da vida...