– Inventam esse negócio de vírus na China e quem paga é a gente aqui...
Comentou enquanto limpava a mão engordurada numa toalha encardida. Ficava atrás do balcão, entre a charque, a carne do sol, as linguiças cuiabanas, a carne suína salgada. Pouca gente circulava pelos corredores do Centro de Abastecimento. E ele espichava o olhar, atônito com os prejuízos, indignado com o suposto ardil chinês: disseminar a Covid-19 – vírus produzido em laboratório – e, com isso, lucrar, crescer, dominar o mundo.
– Sempre sobra pro pequeno...
Quem falou isso, noutra ocasião, foi um comerciante, que peleja num balcão de micromercado. Aquele não mirava os chineses: para ele, os responsáveis eram os banqueiros, os donos do dinheiro – os financistas, numa expressão mais elaborada – que lucram – e muito – mesmo durante as crises. Desolado, ainda no começo da pandemia já reconhecia que amargaria muito prejuízo.
– Eles fecharam tudo porque estão lucrando. Por cada morto, cada prefeito recebe R$ 18 mil!
A senhora exaltada – mas empertigada – comentou isto num ponto de ônibus. Aguardava, impaciente, a máscara no queixo. Isso no início da pandemia, quando comércio abria e fechava. Donde surgiu aquela notícia? Pescou nalgum aplicativo de celular. Mas se os prefeitos lucravam tanto não era mais negócio abrir tudo, deixar o povo morrer à míngua, feito mosca? E quem pagava? Donde vinha o dinheiro? Aquela conversa soava incoerente.
Repeliu as observações, indignada, com uma careta que realçava as rugas.
Muita gente acredita nessas lorotas, nas versões fantasiosas que fervilham nos aplicativos de celular. Há patriotas que reivindicam a liberdade, o direito de não usar máscara; os entusiastas da eugenia querem beber tranquilamente sua cerveja nos bares da vida: quem tiver de morrer, que morra; alguns curtem o delírio milenarista, apocalipse com gigantescas esferas de fogo; e a turma contra a vacina? É vasta, vai dos que acenam com delirantes asneiras geopolíticas àqueles que farejam uma demoníaca alteração do DNA.
Não são poucos os que embarcam nesses delírios. Somam-se àqueles que desdenham do vírus por ignorância – só creem naquilo que enxergam, feito São Tomé – e ao batalhão de destemidos que se entupiram de cloroquina e foram às ruas, intrépidos, afrontar os acovardados. Os resultados estão aí, à vista de todos: o Brasil abriga 3% da população mundial, mas forneceu cerca de 10% dos mortos até agora.
Muita gente, coitada, está aí pelas ruas porque não tem escolha. Precisa trabalhar, sustentar a família. Mas tentam se proteger e proteger os outros, mesmo enfrentando condução superlotada e insensatos sem máscara pelas ruas. Que resta a esses batalhadores? Ir sobrevivendo e aguardar a vacina, a única forma de garantir a vida e a retomada da atividade econômica.
É desesperadora a situação do Brasil: mergulha numa terrível segunda onda da Covid-19 conduzida por uma trupe de lunáticos, fanáticos e incompetentes. Resta isolar-se – ou pelo menos evitar aglomerações –, usar máscara e álcool em gel e não pensar muito no amanhã, para não entrar em desespero. Hoje o País alcançou a catastrófica marca dos 250 mil mortos.
Lá fora, às vezes, prevalece um silêncio denso. Mas é mais comum a quietude ser rompida, em intervalos curtos, pelos sons de motores, pelas buzinas estridentes, pelos latidos distantes – quase fantasmagóricos – de um cachorro qualquer. Pela rua, quase ninguém: às vezes um retardatário apressado, até surpreso com a desolação. Nesta noite de segunda-feira, o feirense parece que mergulhou mais no clima do toque de recolher. É a primeira em que a medida foi antecipada para as 20 horas.
Desde o começo da pandemia morreram 524 pessoas na Feira de Santana com suspeita ou confirmação de Covid-19. Os números são da Central de Informação de Registro Civil – CRC e podem ser conferidos no endereço https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid. Caminha-se, aos poucos, para as 600 mortes. Isso vai significar que, de cada mil feirenses, um terá morrido de Covid-19 desde o ano passado.
A média móvel de mortes, segundo a mesma fonte, é de dois. A situação já andou pior em relação a este indicador: chegou a quatro entre meados de julho e o começo de agosto. Mas caiu para um no começo de fevereiro e voltou a subir. Com o aumento no número de internados – e de pacientes em estado grave – uma nova elevação não pode ser descartada mais à frente.
Apesar dos números, a virada do Flamengo sobre o Internacional no domingo (22) pelo Campeonato Brasileiro foi bastante celebrada aqui na Feira de Santana. Em ruas com concentração de bares houve aglomeração, parecia prévia da Micareta. É até dispensável observar que pouca gente usava máscara. O cenário funesto da segunda onda, pelo visto, não vem sensibilizando mais tanta gente.
O toque de recolher vai ser suficiente para impedir o temido estrangulamento da rede hospitalar? Quem vai responder serão os números dos próximos dias. E, embora a campanha de vacinação tenha começado, especialistas advertem que os efeitos demoram algum tempo para ser percebidos. E é bom ressaltar que a vacinação é a conta-gotas, já que o governo de Jair Bolsonaro, o “mito”, não está nem aí para a vida do brasileiro e, lá atrás, não tratou de providenciar as vacinas.
Mês que vem completa-se um ano que as medidas mais restritivas contra a pandemia começaram a ser adotadas no Brasil. É duro suportar tantas restrições, tantos cuidados, tantas dificuldades. Mas o pior é acompanhar o noticiário e perceber que, neste País, tudo indica que o horror ainda vai se arrastar por muito tempo...
Mais uma carreata defendendo o impeachment de Jair Bolsonaro, o “mito”, aconteceu hoje (21) aqui na Feira de Santana. O movimento se repetiu em dezenas de cidades de diversos estados brasileiros. Escorado por sua aliança com o famigerado “Centrão”, na Câmara dos Deputados, dificilmente o “mito” cai. Pelo menos por enquanto. Mas a mobilização chamou muito a atenção por duas reivindicações complementares: o retorno do auxílio emergencial e a ampliação da campanha de vacinação contra a Covid-19.
Discute-se pouco aqui na Feira de Santana a necessidade do retorno do auxílio. Quem se orienta pela postura das autoridades políticas locais, fica com a sensação de que está tudo bem, com todo mundo trabalhando, se virando como sempre para sobreviver. As ruas desmentem a impressão: pedintes, crianças esmolando nos semáforos, gente oferecendo serviço miúdo, topando qualquer biscate, é o que se vê. Constitui a regra desde janeiro, aliás.
A carreata serviu, portanto, para dar visibilidade à necessidade da volta do auxílio. Outra urgência é a vacinação em massa. Sabe Deus – ou o diabo – de onde o “mito” e seus acólitos tiraram o delírio obscurantista contra a vacina. A alucinação tem efeitos bem práticos: enquanto os brasileiros não forem vacinados em massa, mortes e internações se manterão em patamares elevados e a economia – tão exaltada na demagogia oficial – seguirá andando de lado.
Uma parcela ínfima dos feirenses – e dos brasileiros – foi vacinada até aqui contra a Covid-19. É bom lembrar que se não fosse a “vacina chinesa do Dória” – é assim que o “mito” se referia à Coronavac – nem isso teria ocorrido. Foram os esforços do governo paulista e do Instituto Butatan que viabilizaram a vacina. O “mito” apenas pegou carona no esforço do governo paulista. E seus acólitos – sobretudo a matilha digital – saíram alardeando que foi o seu “messias” quem providenciou a Coronavac. Nada mais mentiroso, nem patético.
A luta pela vacinação tem que se intensificar. Está nisso aí o mérito da carreata, que contou com o apoio da APLB e da Adufs – a associação dos professores da Uefs – e com a militância ativa do PSOL. No fundo, a luta é comum a todo mundo que é movido pela energia da vida e que rejeita os impulsos genocidas que, hoje, prevalecem no Planalto Central.
É o negacionismo e a brutal incompetência dos lunáticos encastelados em Brasília que vêm bloqueando o acesso dos brasileiros à vacinação. Vacinar-se é passaporte indispensável para o retorno à vida normal.
O mais é mimimi de troglodita...
Confesso que pensei em escrever a famosa crônica sobre a falta de assunto. Mas devo reconhecer que me falta talento para a empreitada e o pior é que não falta assunto aí na praça. A sordidez no Planalto Central, a indigência intelectual, a truculência, a ignorância, a falta de rumo e de perspectiva, o futuro sombrio, tudo poderia render textos contundentes para entreter quem lê. Isso para não mencionar a pandemia, os aumentos dos combustíveis e dos preços dos alimentos.
Mas devo admitir que o noticiário político vem provocando asco, até repulsa. Revolvê-lo, destrinchá-lo, exumá-lo, dá a repugnante sensação de se mexer numa sarjeta regurgitando dejetos. E ver saltando de lá ratazanas gordas, luzidias, asquerosas e – sobretudo – agressivas, autoritárias, totalitárias. Então é melhor deixar a tarefa ingrata para gente com mais estômago. Sobretudo porque amanhã é sexta-feira.
Lembro que, em textos anteriores, já mencionei as sextas-feiras libertárias que anunciam o final de semana. A sensação de leveza vem logo pela manhã, sobretudo quando é dia de sol. À tarde pulsa mais aquela sensação de liberdade, o reverso das melancólicas noites de domingo. Mas, com tantas restrições impostas pela pandemia, reconheço que a própria sexta-feira perdeu parte do seu encanto. O que continua é a melancolia do domingo à noite. Mas, para escrever sobre ela é melhor aguardar o próprio domingo à noite.
Como solução para a falta de assunto, antes, na boca da noite, me animei com o céu espetacularmente iluminado por relâmpagos. Não ouvi trovões e percebi que a chuva não ia chegar aqui na Feira de Santana. As nuvens estavam dispersas demais para uma tempestade. E eu já animado, planejando descrever a trovoada, a torrente, o reflexo fugaz da iluminação elétrica sobre a água escorrendo rápida. Mas a chuva não veio.
Que fazer? Lembrei que amanhã recomeça o toque de recolher, os números da Covid-19 voltaram para patamares alarmantes. Mas também vai cansando repisar o assunto, lembrar que, pelas ruas, poucos feirenses usam máscaras e muitos julgam que a pandemia já acabou. Até garimpei uma ideia interessante: por que muitos parecem desejar o flerte com a morte? Fanatismo? Ignorância? Fastio pela vida? O tema é fascinante, mas, quando falta inspiração, as palavras ficam pálidas e as ideias, etéreas.
O fato é que, arrastando-me, vou me aproximando do epílogo de um texto que, no fundo, não tem sentido. Nada o fundamenta. Nele não há ordem, nem ideias. Só o papo vazio, errático, bêbado, de quem queria aproveitar o silêncio e a inspiração – que não veio – da noite de quinta-feira.
Então, para arrematá-lo com alguma elegância, é bom desejar um bom final de semana para quem nos lê!
– Para que tanto papel?
E ficou, por alguns instantes, observando a banca multicolorida, repleta de publicações. Revistas de moda, de culinária, de esportes, de decoração e arquitetura, de receitas, de telenovelas. Afora os jornais, com suas fotos e manchetes, empilhados, comunicando acontecimentos, requisitando atenção. Havia também livros numa prateleira, plastificados, anunciando filósofos, grandes pensadores, coisas assim. “Gente diabólica”, murmurou e foi se afastando.
Na lateral da banca, uns livros com capas sanguinolentas, mulheres seminuas, títulos chamativos em vermelho, em azul. Romances. Best Sellers. Romances? Aquilo era pornografia, bastava olhar a capa. Volumosos, tinham muitas páginas, muita coisa escrita. Para quê aquilo? Moças que lessem iam desembestar, querer ser iguais aos homens. E os rapazes? Iam virar comunistas, subversivos, defender revoluções, invejar a riqueza dos ricos.
Parou no meio-fio da avenida Getúlio Vargas. E ficou aguardando uma brecha para atravessar. A luz do sol naquele começo de manhã se refletia num átimo sobre o dorso dos automóveis que avançavam velozmente. Aproveitou para examinar as fachadas das lojas, os letreiros coloridos.
– Isso aí é que é leitura com utilidade!
Letreiro de loja, placa em esquina, os panfletos que se distribuíam pelas esquinas tinham sua utilidade. Informavam, esclareciam. Mas essa coisa de muito papel, de muita leitura, era inútil. Nem bíblico aquilo era. Tudo bem que a Bíblia tinha muita palavra, mas era diferente. É a Palavra de Deus. E todo mundo lia devagar, um versículo ou outro, nada de gastar vista, lacrimejar, se arriscar em muito debate, muita especulação.
– Mesmo que leitura demais endoida!
É o caso de muitos maconheiros. E também dessa turma de universidade, que fala muito e ninguém entende. Para quê tanta palavra, tanta conversa, tanto discurso, Deus do céu? Escola devia ser só para aprender a fazer conta, ler um bilhete, garatujar umas linhas, ler um versículo da Bíblia. É assim que qualquer país prospera. Tempo demais em escola devia ser aproveitado para o trabalho, para já ir aprendendo um ofício, uma profissão.
Estudar só para ser médico, engenheiro, profissão prática. Nada de teorias, de ideologias. Essas coisas são perigosas.
– Bom dia para você!
No cruzamento da Getúlio Vargas com a Barão do Rio Branco o sinal fechou. Aproveitou, então, para atravessar a avenida, ziguezagueando entre os automóveis retardatários. O vento suave e os passos apressados sacudiam um pouco a saia comprida, farfalhuda. O coque, hirto. Para onde ia com tanta pressa? Para uma consulta médica, no oculista. Estava enxergando pouco, precisava trocar os óculos.
Ah!