Assim como critico duramente o tétrico comportamento de Bolsonaro na pandemia, em relação à saúde, elogio a atuação no aspecto econômico, pois conseguiu repassar grande volume de recursos para os estados, ajudou empresas, preservou empregos e fez o “coronavaucher”, fundamental para manter alimentada a população de 40 milhões de brasileiros que vivem na pobreza ou na extrema-pobreza. Além disso, esse dinheiro ajudou a manter o consumo, evitando saques e o aumento da criminalidade.
Com a persistência da pandemia, em 2021, a situação torna-se mais dramática, porque já não há reservas na população; o ritmo das doações de solidariedade tende a cair; e a economia ainda mantém um alto desemprego. Desse modo, considero fundamental a manutenção dessa ajuda, para quem mais precisa (com melhor fiscalização), por mais seis meses, pois, nesse tempo, pelo menos metade da população já deverá estar vacinada, facilitando a retomada.
O governo alega que não tem recursos, mas acaba de gastar R$ 3 bilhões em emendas, na eleição do Congresso; o Judiciário mantém seus penduricalhos milionários; a classe política mantém seus privilégios. Agora, é a hora do sacrifício, de mostrar que os civilizados discursos possuem alguma consistência.
O “coronavaucher” pode ser mantido de forma mais restrita, sem adicionais para mães, beneficiando um menor número de pessoas – já foram 67 milhões de brasileiros –, que tenham maior necessidade. Esta ajuda, mesmo restrita, produziria algum alívio, nesse extrato social tão espoliado.
Infelizmente, há uma luta política intestinal, que deturpa o debate e vitimiza os brasileiros, contaminados pela insanidade ideológica e contagiados pela Covid-19. Nenhuma barbárie que pudéssemos imaginar para este século nos reservaria as câmaras frigoríficas e mortes por asfixia, em Manaus.
As mortes sem luto, solitárias, sem as famílias, já tão terríveis, são, agora, agravadas pelo dantesco desespero por oxigênio. O caos administrativo, gerado por uma estrutura de poder corrupta e incapaz, no estado, e por um Ministério da Saúde atônito e sem diretriz, que interpreta errado os ciclos da doença, está cobrando, violentamente, o preço de nossa leniência.
Simbolicamente, o Ministério da Saúde tem na perda de testes estocados em um galpão de aeroporto; na falta de seringas, pois não foram compradas a tempo; na falha de compras prévias das vacinas, que obriga o governo a ficar de pires na mão diante da Índia e da China, correndo para compensar a letargia; e no desmascaramento das mentiras contadas pelo ministro da Saúde o perfeito retrato de seus desmandos. Além disso, temos a opção, letal, do presidente pela imunidade de rebanho, inatingível sem vacina ou atingível, apenas, se aceitarmos uma hecatombe sanitária.
Depois da Amazônia, Rondônia já anuncia o colapso da Saúde. Também Mina, e até São Paulo. Os estados do Norte, distantes, isolados, com serviços precários, irão cair um após o outro, em trágico dominó.
A campanha eleitoral, as festas de fim de ano e o Enem alimentaram a disseminação do vírus, inclusive com nova cepa, brasileira, talvez mais contagiosa, que acaba de ser detectada no Japão e em uma série de nove casos na Inglaterra.
Não há nenhuma certeza de que as novas cepas podem ser controladas ou escaparem das vacinas. Estudos iniciais mostram que sim, para a variante inglesa (por uma vacina), mas não para a africana.
Quanto mais gente infectada, maior a chance de desenvolvimento de uma variante com “escape imunológico”, o que nos daria um cenário devastador inimaginável. Isso torna mais urgente e imperativo o esforço de vacinar, de conter o contágio, para reduzir a chance de novas mutações. Os vírus são sobreviventes natos e caçam falhas, através de suas mutações, para a sobrevivência. É um competidor feroz, nessa corrida.
Longe desse texto querer assustar o leitor. O que não admito mais – e isso desperta os meus instintos mais primitivos – é essa apropriação política da pandemia, essa instrumentalização da tragédia e da morte para a disputa de poder, que repercute, nas redes sociais, com seu debate inútil e feito aos berros. O que desejo é alertar que estamos em uma guerra; que, nas guerras, há dores e sacrifícios, mas que não existe outro caminho para vencer.
Nós ainda não vencemos e o inimigo muda o poder de contágio e ferocidade de forma progressiva. Lembro-me de Churchill, após a vitória em El Alamein, dirigindo-se aos britânicos: isso não é o fim, não é nem mesmo o começo do fim, mas, talvez, seja o fim do começo. Estamos apenas no fim do começo e se não nos unirmos, pagaremos em desespero, falência e mortes o custo de nossa desunião.
O caos em Manaus não deriva apenas do aumento do contágio pela Covid-19 – um medo que apavora a todos –, mas da incapacidade administrativa e desordem que vigora no estado, com o governador Wilson Lima (que já teve até pedido de prisão feito pela Polícia Federal) e, em especial, em Manaus, com o legado do ex-prefeito Arthur Vírgilio.
Incapazes de organizar, de forma mínima, e ampliar, de forma adequada, a rede de saúde da capital, o que Manaus vai deixar na memória é a terrível morte por asfixia. Mesmo com a chegada da vacina, o que temos é a desordem administrativa, com o sumiço de 60 mil doses e nomeações para furar a fila da imunização.
É nítido e claro que as autoridades locais não têm mais capacidade de gestão e precisam ser cobradas e responsabilizadas pela tragédia que ocorre. Não se pode deixar de culpar o Governo Federal, mas é preciso não esquecer que a gestão local foi incapaz de administrar, de forma apropriada, os volumosos recursos que foram repassados pela União.
O horror vivenciado em Manaus é um pacto coletivo de mediocridade.
Trabalhei por muitos anos em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), inclusive na primeira do Hospital Geral Clériston Andrade (HGCA), com o Major Domingues, do Exército. Quando a UTI foi inaugurada, apenas nós dois éramos plantonistas. Metade do tempo com remuneração e outra metade sem. Parte dos dias, ela funcionava como uma semi-intensiva e dividíamos a prescrição dos pacientes, até que conseguimos uma equipe completa, pois eram raros os profissionais, naquela época.
Com o tempo, a UTI do Clériston cresceu, mas a demanda era maior do que a disponibilidade. E muitas, muitas, muitas vezes tive que escolher, na escassez daqueles tempos, entre 2 a 3 solicitações, quem iria ocupar a vaga disponível. Era dilacerante ser senhor da vida ou morte. É algo de onde não saímos bem. Ainda trabalhei em unidades privadas, por alguns anos. Depois, deixei as UTIs. Era exaustivo demais. Hoje, as UTIs estão em outro patamar.
Digo isso porque nada do que vivi chega perto do que as equipes de saúde de Manaus devem estar passando. Arrebentadas, dilaceradas, destruídas, oscilando entre a raiva e a impotência, com a frustração de ver um paciente após o outro ter seu oxigênio reduzido; de ver a saturação cair; de ver a hipóxia ir se instalando; de ver a luta insana e desesperada para respirar. E morrerem.
Ninguém de fora consegue imaginar a exata dimensão do impacto que isso tem. Não se segue adiante sem carregar sequelas. Eu não gostaria de estar na pele deles, porque acho que teria um surto de insanidade.
Que Deus, sob qualquer de suas formas, os proteja!